Estadão, 2 de março de 2007.
Um novo desfile e a mesma fantasiaWashington Novaes*
Haja fôlego, paciência, persistência. Há uns 15 anos vem o autordestas linhas transcrevendo periodicamente graves questões levantadas por cientistas, administradores públicos, Tribunais de Contas, arespeito do famigerado projeto de transposição das águas do Rio SãoFrancisco. A todas responde a administração federal - quando responde- com argumentos do tipo "não se pode negar uma caneca de água a 12 milhões de vítimas da seca". E vai em frente, até que surja uma novabarreira - como foi a greve de fome do bispo dom Luiz Flávio Cappio.
Agora, esquecido o bispo e derrubadas na Justiça medidas liminares, anuncia o Ministério da Integração Nacional que fará imediatamentelicitações (no valor aproximado de R$ 100 milhões) para contratarempresas que façam os projetos executivos da obra, orçada em R$ 6,6bilhões nesta etapa. E o bispo manda nova carta ao presidente, lembrando que o Tribunal de Contas da União diz que o projeto nãobeneficiará o número de pessoas que se alardeia, que a AgênciaNacional de Águas propõe obras em 530 municípios para solucionar osmesmos problemas com metade dos recursos previstos para a transposição e que populações a 500 metros do rio continuarão, apesar datransposição, a sofrer com a falta de água. Já o Comitê de Gestão dabacia (que por 44 votos a 2 foi contra a transposição) diz que estaatende a menos de 20% do semi-árido, que 44% da população do meio rural continuará sem acesso a água - "exatamente os que mais precisam"- e que a revitalização do rio prometida pelo Ministério da IntegraçãoNacional precisa "sair do campo da retórica". E o Ministério Público volta a recorrer à Justiça, lembrando que nos termos da Constituição,por atingir terras indígenas, a obra precisa de autorização doCongresso Nacional, o que ainda não aconteceu.
Como já foi dito aqui, parece uma assombração que some e reaparece de tempos em tempos. Sem falar no governo imperial, foi no começo dadécada de 1980, ainda nos tempos do "Brasil Grande" da ditaduramilitar, que o projeto ressuscitou, para uma vida muito breve. Poucomais de uma década depois, embora o então ministro do Meio AmbienteRubens Ricupero dissesse que o São Francisco já era "um rio ameaçadode extinção", por causa do desmatamento nas regiões onde nascem e por onde passam seus formadores, o Ministério do Interior voltou à carga,com um projeto de transpor 150 metros cúbicos por segundo, a um custode US$ 1,5 bilhão. Mas ele foi fulminado por um parecer do Tribunal deContas da União, que mostrava ser um fantasma esdrúxulo, pois oMinistério do Planejamento dele não sabia, assim como os Ministériosda Agricultura (que cuida de irrigação), da Reforma Agrária e daFazenda (que libera recursos). Além disso, o projeto implicava prejuízos de US$ 1 bilhão anuais na geração de energia, inviabilizavamais áreas para irrigação a montante do que beneficiava a jusante econcentrava os benefícios num pequeno número de grandes produtoresrurais.
Foi para o limbo até 1998, quando ressurgiu em nova versão de túneisque levariam água para o abastecimento de cidades, ao custo de US$ 700milhões. Durou pouco a reaparição. Mas já estava de volta no final de 2000, numa versão em que 127 metros por segundo transpostosbeneficiariam 8 milhões de pessoas e o abastecimento de água de 268cidades, além de irrigar 260 mil hectares. O professor Aziz Ab'Saber,da USP, lembrou na época que os beneficiados seriam menos de um terço das vítimas da seca (27 milhões). A Universidade Federal do Rio Grandedo Norte (UFRN) observou que pelo menos 30% da água se perderia porevaporação. E a Cáritas mostrou que a solução para comunidadesisoladas está na implantação de cisternas de placa (das quais já há 160 mil), não na transposição, que não chegaria a esses lugares.Levou algum tempo para recuperar-se o combalido. Mas retornou em 2003.
Dessa vez, teve a oposição do Comitê de Gestão da bacia, da CNBB, daOAB, das arquidioceses à beira-rio. Custaria R$ 4,2 bilhões para umatransposição de 53 metros cúbicos por segundo. Vários especialistas(professor Aldo Rebouças, da USP, professor Abner Curado, da UFRN,professor João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, entre muitos) mostraram a desnecessidade: o problema no semi-árido é de gestão, nãode escassez.
Mesmo levantando mais de 40 questões, o Ibama concedeu em 2005 licençaprévia. Sabendo que 70% da água seria para irrigação e 26% para o abastecimento de cidades, e não para proporcionar "uma caneca de águapara as vítimas da seca". Que não estava equacionada a questão dossubsídios necessários para uma água que poderia custar até cinco vezes mais que a então disponível. Que a maior parte da água transposta iriapara açudes onde se perde até 75% por evaporação. Que havia enormesdiscrepâncias a cada citação do número de beneficiados (12 milhões?7,24 milhões? 9,02 milhões? 7,21 milhões?) e dos hectares irrigados (161 mil? 186 mil?). Mais grave que tudo: o próprio estudo de impactoambiental dizia que 20% dos solos que se pretendia irrigar "têmlimitações para uso agrícola"; e "somados aos solos líticos,notadamente impróprios, respondem por mais de 50% do total" das terrasque seriam irrigadas. Não bastasse, "62% dos solos precisam decontrole, por causa da forte tendência à erosão". Ainda assim,concedeu licença prévia ao projeto, pois as objeções do Comitê deGestão haviam sido ignoradas pelo Conselho Nacional de RecursosHídricos, onde o governo federal, sozinho, tem a maioria dos votos.
Agora, o velho abantesma retorna à avenida, sem responder a nenhuma das muitas questões levantadas principalmente por cientistas.E retorna com a mesma fantasia.
*Washington Novaes é jornalista, wlrnovaes@uol.com.br
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