quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

OS ÍNDIOS WASSÚ E A GUERRA DO PARAGUAI

(publicado na Revista Cabanos. Maceió, FUNESA, nº 1, jan./jul. 2006, p.93-109)

OS ÍNDIOS WASSÚ E A GUERRA DO PARAGUAI: HISTÓRIA,
MEMÓRIAS E LEITURAS INDÍGENAS SOBRE O CONFLITO
Edson Silva*


RESUMO
Os antepassados dos Wassú, assim como os de outros povos indígenas no Nordeste, participaram da Guerra do Paraguai. O que nos informam os registros documentais sobre isso? O que dizem os Wassú sobre a Guerra? Qual o sentido eles dão as memórias sobre aquele conflito? Os estudos recentes sobre a chamada “grande guerra” inovam pela superação das tradicionais ênfases no conflito bélico, nas descrições de batalhas ou biografias de heróis. As atuais abordagens procuram compreender as diversas fases do conflito, bem como os diferentes grupos sociais nelas envolvidos. Nesse texto nos propomos discutir a história e as memórias Wassú sobre a Guerra do Paraguai, situadas nos debates atuais sobre aquele conflito, objetivando contribuir para o maior conhecimento da história indígena no Nordeste contemporâneo.
Palavras-chave: índios Wassú, Guerra do Paraguai, história, memórias.

A Aldeia Urucú (Cocal)
As origens da Aldeia Urucu, atual Cocal, assim como as Aldeias de Escada (PE) e de Jacuípe (AL), remontam ao período final dos combates aos quilombolas de Palmares. Esses aldeamentos forma fundados em terras doadas pelo Coroa portuguesa como recompensa aos índios pela participação nas forças coloniais que destruiu o reduto palmarino. Essas Aldeias foram formadas por índios de antigas missões franciscanas, nas regiões próximas no litoral Sul dos atuais Estados de Alagoas e Pernambuco, e mais índios que vieram da Paraíba acompanhado as tropas de Domingos Jorge Velho que estando combatendo os índios na chamada “Guerra dos Bárbaros” no Açu (RN), foi convocado para deslocar-se para guerrear contra os Quilombos dos Palmares. (Silva, 1995).
Em um Relatório oficial de 1856 sobre as Aldeias indígenas em Alagoas, a “Adêa do Urucu”, como naquela época chamava-se a atual Aldeia Cocal, foi informado que a Aldeia era titulada em quatro léguas de terras em quadro, que foi doada “não só aos índios, como aos soldados, que sob o comando do Mestre de Campo Jorge Velho, auxiliarão aquelles na conquista dos negros de Palmares”[1]. A Aldeia estava localizada em uma região cobertas de matas e com terras bastante irrigadas, banhada por rios caudalosos e vários riachos seus afluentes.
As terras férteis onde se encontrava o a Aldeia “Urucu” eram motivo das invasões dos senhores de engenho, como registrava o Presidente da Província de Alagoas em 1870 no seu Relatório a Assembléia Provincial, quando informou, “Acha-se esta aldeia situada à margem esquerda do rio Mundaú, sete léguas distante da capital, e próxima a florescente povoação de Nossa Senhora da Graça do Murircí. Seu território cheio de muitos engenhos de fabricar assucar, além de muitas plantações de algodão, solo mui fértil, continua em augmento.” [2]
Mas, uma outra versão que aparece em documentos oficiais, dá conta que a Aldeia foi constituída durante a Guerra dos Cabanos (1831-35) por índios vindos das Aldeias de Barreiros e Jacuípe. Através de registros históricos temos conhecimento que os índios das aldeias situadas na região estiveram envolvidos tanto no lado dos cabanos, como ao lado das tropas legais que combateram aqueles revoltosos que possuíam acampamentos nas Matas do Tombo Real, localizada entre essas aldeias. (Silva, 1995; Lindoso, 2005).
Na mesma perspectiva o Jornal Correio de Alagoas informava em 1905 que o aldeamento do Cocal situava-se “à margem esquerda do Rio Camaragibe, a 5 léguas de Leopoldina, no Passo de Camaragibe, e foi fundado durante a Rebelião de Panellas de Miranda (uma alusão a Cabanada) por alguns índios emigrados de Barreiros e Jacuype”[3]
O intenso fluxo de combatentes durante a Cabanada, deve ter influenciado a composição do contingente populacional das Aldeias localizadas nas proximidades. Historicamente os índios das aldeias de Escada e Jacuípe sempre foram chamados pelo Estado para atuarem como guardiões tanto contra o roubo de madeiras das Matas, como para evitar as fugas ou procurar escravos negros e criminosos que lá buscavam refúgio. Além disso, finda a Cabanada, o Governo Imperial fundou duas colônias militares, como forma de manter o controle estratégico geopolítico na região. Essas colônias estavam situadas na fronteira entre as duas Províncias, uma em cada lado, Leopoldina (AL) e Pimenteiras (PE), e foram instaladas em terras dos aldeamentos oficialmente declarados extintos. (Silva, 1995).
A extinção do aldeamento com a medição de suas terras foi pedido desde em 1860. Naquele mesmo ano O Diretor Geral dos Índios informava ao Presidente da Província que ele arrendara as terras indígenas com o consentimento dos índios, o que foi pouco provável. Dizia O Diretor,
Essas terras são de propriedade dos índios, que estão por mim arrendadas a três annos ao Comendador Dr. Manoel Rodrigues Leite e Oiticica, por Escritura Pública e que nenhuma dúvida resta pertencer ellas aos índios como se seos títulos se evidencia alem das provas, as mais irrevogáveis por isso eu e os índios pedimos a V. Excia. A justiça, e proteção ao Governo para que seja demarcada já a Aldeia urucu para de uma vez se desenganar o Sr. Capitão José Marinho e outros intrusos proprietários mercadores na sobredita Aldeia, esse direito num lhes assiste para assenhoarem-se a posse de terrenos dos índios e desfrutando com graves injurias dos mesmos índios. [4]
Após a declaração oficial da extinção dos aldeamentos em Alagoas em 1872, seguiu-se o processo de medição e demarcação das terras. Em 1876 o responsável pelas medições das terras do aldeamento informava a Presidência da Província uma “Relação de rendeiros existentes na Sesmaria Urucú”, onde são citados 32 nomes, acompanhados pelos valores atrasados e não pagos dos arrendamentos. O processo de demarcação a semelhança de outros lugares, como ocorreu na Aldeia da Escada/PE, favoreceu os tradicionais invasores do território indígena com o reconhecimento de suas posses, que passaram a ser consideradas legítimas. Aos índios foram destinados, conforme previsto em lei, uns poucos lotes individuais, de diferentes tamanhos para casados e solteiros. A outros índios restava trabalharem para os senhores de engenho em suas próprias terras ou migrarem, dispersando-se pela região.
No final da década de 1970 após uma série de conflitos entre índios e não-índios, a FUNAI iniciou estudos para demarcação das terras dos índios Wassú que compreendiam as Aldeias Cocal, Pedrinhas, Fazenda Freitas e Serrinhas. Em setembro de 1986 a área foi declarada de ocupação indígena. Alguns fazendeiros, posseiros e fornecedores de cana apelaram e receberam apoio da Justiça para não saírem das terras indígenas, mas apesar dos processos judiciais que tramitavam a área foi demarcada em 1988. O clima de tensão aumentou, e em 1991 ocorreu o seqüestro e assassinato do Cacique Hibes Menino. A demarcação foi homologada naquele mesmo ano, deixando de fora a parte por onde passa BR-101 e os índios Wassú Cocal, como se autodenominam, continuam reivindicando a demarcação de 2.800 hectares. (PETI, 1993, p.63-65).
A Guerra do Paraguai: novas abordagens
O conflito, que se convencionou chamar a Guerra do Paraguai (1865-1870), vem sendo, nos últimos anos, objeto de vários estudos, que baseados em amplas pesquisas documentais, possibilitaram novas abordagens sobre o confronto armado que sacudiu o Cone Sul no quartel final do século XIX. Nessa perspectiva, foram superados os trabalhos tradicionais que enfatizaram aspectos militares, bem como as biografias de heróis oficiais da Guerra.
Foi deixado de lado também o enfoque positivista republicano que acusava o Brasil monárquico pelo genocídio imposto ao Paraguai. Assim como foi abandonado o enfoque marxista de fins da década de 1960, que enfatizava um suposto nacionalismo progressista paraguaio, e apontou o expansionismo do imperialismo britânico como responsável pela Guerra. O conflito passou a ser visto como regional, uma disputa entre os países envolvidos pela hegemonia na região do Prata. (Doratioto, 2002: 19).
Com os estudos mais recentes foram evidenciados outros aspectos da Guerra do Paraguai (GP). Através dos novos enfoques, foram discutidas as formas do recrutamento, a participação negra de escravos e libertos, de mulheres, as imagens (fotografias, pinturas e caricaturas) da guerra, etc. Todavia ainda foi pouco estudada a dimensão da participação indígena naquele conflito, bem como as narrativas e as memórias resultante dela.
Nos novos estudos sobre a Guerra do Paraguai (1865-1870) as análises sobre o recrutamento são unânimes em apontarem que no início do conflito a perspectiva de sua curta duração, somando-se a imagem construída de uma guerra da civilização moderna contra a “barbárie” paraguaia indígena guarani que deveria ser derrotada, motivou o alistamento de muitos para participar no front de combates. Com o prolongamento do conflito, além de manifestações de protestos em todas as províncias do Brasil, tornou-se difícil o recrutamento de novos soldados, inclusive com a resistência dos membros Guarda Nacional convocados para a Guerra.
Mesmo tendo a libertação de escravos como uma primeira solução para suprir as necessidades de combatentes, com a continuidade do conflito, o Governo Imperial através de decreto criou e incentivou os corpos de Voluntários da Pátria. Ainda assim, em uma fase crucial da Guerra, quando depois de seguidas derrotas os aliados partiam para batalhas ofensivas decisivas, os entusiasmos patrióticos minguaram e os alistamentos diminuíram. (Lucena Filho, 2000:14).
Nesse momento foi usado o velho e conhecido método do recrutamento forçado, que atingiu os membros do partido opositor ao que estavam no poder em cada província, os contrários a ordem política e social vigente, os considerados desordeiros, perigosos, os presos e condenados por crimes, e principalmente a populações pobre, os habitantes das cidades do interior, das zonas rurais, a exemplo dos índios no Nordeste. Para fugir das perseguições das forças legais, os considerados como potenciais “soldados-voluntários” elaboraram diversas estratégias contra o recrutamento forçado.
Na documentação das Diretorias de Índios nas Províncias encontramos diversos ofícios que se referem ao processo de recrutamento de índios para a GP. É clara a truculência empregada pelos diretores das aldeias no alistamento forçados dos índios como Voluntários da Pátria. As justificativas são sempre a manutenções da ordem e da paz nas aldeias.
O Diretor Geral dos Índios em Alagoas escreveu em 1866 aos diretores das aldeias com uma “ordem de recrutamento dos índios que estiverem ao seu alcance”. [5] O desamparo em que se encontrava em 1866 as famílias dos índios para a GP era motivo de recusa dos novos voluntários. Em outra correspondência naquele mesmo ano ao Presidente da Província, insistia o Diretor Geral na necessidade de pagar os vencimentos às famílias, pois sem a vantagem pecuniária 40 índios da Aldeia de Jacuípe que atenderam a convocação para o recrutamento, “esfriarão todos”.[6]
As fugas para se esconder nas matas ou desaparecimento do seu local de moradia, as deserções de tropas já formadas, as declarações de doenças, os casamentos até com mulheres mais velhas, homens que se vestiam de mulher, os ataques de grupos armados às forças legais que traziam recrutados a força para a capital, ou ataques a cadeias do interior libertando os presos a serem enviados como soldados para a guerra, rebeliões, etc. foram às muitas formas de resistências ao recrutamento que ameaçaram a ordem social vigente. (Doratioto, 2002: 264-265; Lucena Filho, 2000: 97-128).
Recrutamento e militarização dos índios da Aldeia Cocal
O recrutamento indígena e a militarização das aldeias foi uma prática recorrente na História do Brasil. As aldeias indígenas além de reserva de mão-de-obra foram tidas também pelo poder político oficial como local de recrutamento, para formação de tropas nas guerras contra outros povos considerados hostis à Coroa, nos combates a quilombolas, a movimentos contrários a ordem estabelecida pelo Estado ou pelo grupo político no poder. Assim, a militarização indígena ocorrida desde os primeiros tempos da colonização representou também uma fonte de demonstração de poder nas disputas locais.
Mas os indígenas não foram passivos nessa condição. Não aceitaram o recrutamento simplesmente como uma atitude colaboracionista, de uma aliança ao poder vigente. Temos que perceber como esse recrutamento foi lido a partir da ótica dos indígenas. Em qual contexto ocorreu o recrutamento? Como essa participação em milícias armadas a serviço do Estado ou de um chefe político local serviu de barganha para os interesses indígenas?
É necessário desconstruir imagens até então sedimentadas sobre a História e esses povos. Os novos estudos são pautados por outras preocupações, “Importa recuperar o sujeito histórico que agia (age) de acordo com a sua leitura do mundo ao seu redor, leitura esta informada tanto pelos códigos culturais da sua sociedade como pela percepção e interpretação dos eventos que se desenrolavam”. (Monteiro, 1999, p.248).
Todavia, é preciso ter presente as observações de Thompson sobre cultura, “não podemos esquecer que ‘cultura’ é um termo emaranhado, que, ao reunir tantas atividades e atributos em só feixe, pode na verdade confundir ou ocultar distinções que precisam ser feitas. Será necessário desfazer o feixe e examinar com mais cuidado os seus componentes: ritos, modos simbólicos, os atributos culturais da hegemonia, a transmissão do costume de geração para geração e o desenvolvimento do costume sob formas historicamente específicas das relações sociais e do trabalho.” (1998, p. 22).
Os índios da Aldeia Urucú e os das demais aldeias próximas, como dito anteriormente, foram recrutados para milícias publicas. Na documentação sobre a Aldeia Urucú é citado várias vezes o Capitão Antonio Salazar como uma espécie de comandante das tropas indígenas. Em 1860 Antonio Salazar se dirigiu ao Presidente da Província “lembrando da marcha que fis com os meos subalternos a S.M.I..” para pedir víveres alimentares no retorno de sua gente a Aldeia, como explicou, “a fim de retirar a minha gente o que não terem o que posão comer em caminho, para V. Excia. Abonar alguns viveres que dê para a viagem”. [7]
Finda a Cabanada o Estado temia os índios que continuaram armados, após terem participado nos combates aos revoltosos cabanos. A preocupação está registrada em um documento que exigia de Salazar a devolução do armamento em seu poder e dos índios por ele liderados, “mandei ao Cocal, exigir do capitão dos Índios Antonio de Souza Salazar, o armamento nacional, que tenha em seo poder, respondeome este, que não entregava”.
O medo dos índios armados estava relacionado a acontecimentos passados e contemporâneos, como dizia uma autoridade, “o animo deliberado em que se achão aquelles índios de conservar em seo poder o armamento para fins sinistros, como muitas vezes tem dado provas, bem como no anno de 1848 que veio em seo séqüito a hum sitio deste Engenho denominado cachoeira e roubou a dois portugueses, e caso bem resente de ter elle e seu coito na parada União assassinado publicamente nas ruas da povoação de Camaragibe, a hum soldado do Tenente Coronel José Ignácio de Mendonça”. [8]
A desobediência dos índios de Cocal ao Inspetor de Quarteirão (autoridade policial local), fez com que o Subdelegado acusasse Antonio Salazar e os índios do aldeamento, “neste distrito de Soledade no qual compreende huma Aldeia denominada Cocal, esta composta de gente de diferentes coalidades, e muito poucos índios, e como fôce o pior lugar destas mattas”. [9] Mas, o Diretor Geral dos Índios enviou a Presidência da Província um ofício, defendendo os índios e o Capitão Salazar, questionando as perseguições do Subdelegado e lembrando que eles sempre colaboraram com as autoridades policiais, exaltando “os serviços prestados por este Capitão aquela delegacia (Camaragibe)”, sendo Salazar o responsável pela proteção das matas contra o roubo de madeiras. E afirmava ainda o Diretor que os índios “são os indivíduos mais promptos em cumprirem os deveres do Governo”, ressaltando “a convicção que tenho de serem elles, os súbditos mais fieis da Coroa e ao Governo”. [10]
Em Alagoas os índios de várias aldeias foram também recrutados para o trabalho em obras públicas como a abertura de canais, obras de saneamento e aterros de mangues em Maceió. Em um ofício que acompanhava uma lista de desertores, informava o Diretor Geral dos Índios, “Os lotes de índios que por ultimo disertaram, do Cocal ahinda não tinhão chegado á Aldeia até a sahida da Companhia. Já dei ordens para recrutar os solteiros, e remeter os casados prezos tanto para darem conta dos cavallos, como a serem congregados ao trabalho.” [11] As péssimas condições de trabalho, inclusive com morte de alguns índios, provocou fugas de outros, xukuru-kariris de Palmeira dos Índios e wassús. (Antunes, 1984).
Os Wassú e a Guerra do Paraguai
Em um depoimento recente, a partir de suas lembranças, o índio Wassú conhecido por “Seu” Zuca fez uma leitura sobre a Guerra do Paraguai e o Capitão Salazar,
Outra coisa que eu tô alembrando também foi a Guerra do Paraguais. Essa Guerra de Paraguais que houve daqui e de todo as aldeias, os povo de índios. E esses povo de índio que foram desse Capitão Salazar, foram com outras entidades que eram guerreros tamén. Ele voltou como capitão da Guerra do Paraguai. Ele sabia com o batalhão dele. Quando ele recuava e ele sempre dizia “ninguém vai na minha frente”. Aquela turma era sempre atrás dele. Ele só recebia aquelas pancada de bala e nenhuma atingia ele. Quando era de noite, ele juntava com o povo dele botava aquelas erva do mato, só por causa do sangue pisado. A bala não entrava nele. Só perdeu uns guerrero porque ele foi à frente. Quando entrou na frente dela, a bala atingiu ele. Tudo que tava por trás dele, nenhuma bala foi atingida. [12]
Os índios das Aldeias Jacuípe e Cocal participaram da Guerra, como afirmava o Diretor Geral dos Índios em Alagoas, quando reconheceu o direito aos vencimentos pelas famílias dos voluntários, “Eles tem direito a vencimentos de duzentos reis diários que concede a Lei provincial do ano passado próximo às famílias dos voluntários”. [13]
As memórias sobre a participação indígena na Guerra e sobre o Capitão Salazar, são constantementes associadas e evocadas pelos Wassú para reafirmarem seus direitos às suas terras. A exemplo das entrevistas realizadas 1978 pelo antropólogo Clóvis Antunes (UFAL) com Manuel Honório da Silva, que se declarava líder do povo indígena “porque recebeu ordens de seu avô, José Tomás Marques Flores, e este, por sua vez, recebeu ordens do Capitão Salazar para aconselhar o grupo”. O pesquisador registrou que Manuel “Falou entusiasmado do Capitão Salazar. ’Era um capitão temido. Foi para a Guerra do Paraguai, e quando voltou, recebeu do Imperador Dom Pedro II quatro léguas de terra em quadro para sua tribo cuidar da roça’”. [14]
A vinculação do direito às terras como recompensa recebida do Imperador pela participação na Guerra do Paraguai também é evocada por outros povos indígenas no Nordeste, a exemplo dos Xukuru do Ororubá (Pesqueira/PE) e os Fulni-ô (Águas Belas/PE). Nesses dois povos os mais velhos contam que seus antepassados “venceram a Guerra”, e que por esse motivo herdaram as terras que vivem por direito, pelo “sangue derramado” dos antepassados nos combates naquela Guerra. (Silva, 2005).
O líder Manuel Honório em uma longa reportagem publicada pela Imprensa Universitária UFAL/1979, frente às invasões do território indígena, reafirmava o direito a terra como herança da recompensa pela participação na Guerra do Paraguai, “A terra era de todos os índios como agora está meia légua de terra é de todo mundo que mora aqui. O Imperador Dom Pedro II deu de presente aos índios para seus netos e bisnetos, 4 léguas em quadro, aos índios que se alistavam na brigada de Guerra do Paraguai. Agora só existe uma meia légua de terra. Os homens brancos tomaram tudo.” [15]
A memória sobre o Capitão Salazar foi também acionada, como constatou a citada publicação,
O capitão Salazar está ainda na memória dos mais velhos do aldeamento do Cocal. A cabocla Dolores de Oliveira Freitas afirmou: - ‘O índio mais velhos que recebeu terras do Imperador Dom Pedro II foi o Capitão Salazar; participou da brigada na Guerra do Paraguai. Ele era o chefe dos índios do Cocal. O Rei deu de presente como prêmio, as terras da Aldeia de Cocal porque os índios participaram da Guerra do Paraguai’.
A matéria jornalística trouxe mais um depoimento em que outro indígena fez a sua leitura sobre o mesmo tema,
E José Manuel de Souza, apelidado de ‘Seu Paulo’, com 50 anos de idade e sete filhos, confirmou: ‘O Capitão Salazar de Souza, o chefe dos índios de Cocal, ficou por aqui porque Dom Pedro II achou que ele podia ficar. Quando o Rei esteve em perigo, juntamente com o Marechal Deodoro da Fonseca, chamou ele os índios a atenção para ir a Guerra Salazar pegou a fita de Capitão e foi para a brigada lutar na Guerra do Paraguai.
Foram 14 índios para a Guerra do Paraguai e duas mulheres. Uma das mulheres chamava-se Puco-Puco e a outra Lambu. Tem esses nomes porque índio antigamente não tinha nome certo. Eles tinham nome de bicho do mato. Morreu na Guerra somente um índio’. [16]
Compreender os significados das memórias, das narrativas sobre a Guerra do Paraguai para os Wassú, é compreender a “história de experiências”. Um debruçar sobre essas narrativas, possibilita entender como “pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram experiências”. (Alberti, 2004:25). Essas experiências foram/são marcantes porque foram intensamente vividas. As narrativas do povo Wassú nos ajudam ainda “entender como pessoas e grupos experimentaram o passado e torna possível questionar interpretações generalizantes de determinados acontecimentos e conjunturas”. (Idem, 26).
Os Xukuru do Ororubá relatam que os seus antepassados voltaram com condecorações da Guerra do Paraguai, “... o Irmão da Hora trouxe um terno, de reis. Digo, porque o terno eu vi. De coroa, galão e todo, porque ganhou esse prêmio Irmão da Hora, Antonio Molecão e Antonio Tavarinho”.[17] Em seus relatos, os Xukuru falam ainda de quepes, medalhas, espadas, “diplomas da Guerra”, roupas e outros adereços militares, além dos “títulos de terra”, trazidos pelos que retornaram da Guerra do Paraguai. Autores destacam o “heroísmo” do Cabo Zeferino da Rocha, morador do “Sítio Goiabeira no alto da Serra” [do Ororubá], veterano da GP, membro do “Trinta de Voluntários”, composto de índios xukurus, “todos condecorados depois com medalhas de Guerra e Bravura”. (Barbalho, 1977:71; Wilson, 1980:42).
Um índio Wassú também na referida matéria publicada pela UFAL, citava possuir adereços da Guerra do Paraguai,
Para provar que os índios da Aldeia de Cocal participaram na Guerra do Paraguai, Cícero Honório da Silva, com grande entusiasmo, afirmou: ‘Tenho comigo ainda a estrela do chapéu do capitão Salazar’. E Manuel Honório da Silva prosseguiu; ‘Eu tenho a espada do Capitão João Tomás Marques das Flores que foi o último capitão dos índios de cocal. E quando me entregou a espada, disse: ‘Não dê jamais essa espada a ninguém. Ela é também a minha herança e minha glória’. Imediatamente levantou-se foi para casa. Após alguns minutos, trazia na mão uma espada de prata dentro de uma bainha também de prata. Muito contente e feliz disse; ‘Eis aqui a espada que tenho como herança’. [18]
O antropólogo Clóvis Antunes traz em seu livro (inédito) Tribo Wassú: os caboclos do Cocal uma foto datada de 1978, em que Manoel Honório da Silva “o pajé dos Wassú do Cocal” segura na mão uma espada “que pertenceu ao Capitão João Tomás Marques das Flores que foi alistado como Voluntário da Pátria durante a guerra do Brasil com o Paraguai” (Antunes, 1985, p.24).
Quando o antropólogo entrevistou Manuel Honório da Silva em 1981, sobre as recordações das lideranças do passado, ele afirmou,
A gente sabe que depois da Guerra do Paraguai as coisas foram melhorando aqui no Cocal. O chefe que a gente conheceu foi José Tomás das Flores. Ele dava ordens para o povo brincar no Toré. Era o nosso chefe, o nosso capitão. Ele se referia muito ao Capitão Salazar. Depois, eu ficando grande, recebi do meu pai com 12 anos a ordem de continuar como chefe do Cocal. Sou o representante lá fora. Aqui no Cocal eu sou o ‘inspetor’ até hoje. Quando o delegado quer resolver alguma coisa com os índios do Cocal, me chama e eu represento a turma toda. E eu tenho até hoje a espada do Capitão José Tomaz Marques das Flores que é uma herança minha, da minha família e de todos os índios do Cocal. [19]
Nas pesquisas que realizou em 1979 para o levantamento fundiário na área indígena, antropóloga a serviço da FUNAI Delvair Montagner Melatti, escreveu em seu relatório o que ouviu dos índios,
Os caboclos narraram que D. Pedro II, dou quatro legas em quadro (uma sesmaria), ao Capitão Salazar de Souza, por terem participado na Guerra do Paraguai. Como estava havendo dificuldade em recrutar brasileiros para lutarem na Guerra, o Capitão Salazar, ofereceu alguns índios para participarem dela. Então, 12 (doze) índios entre homens e mulheres foram para o Paraguai. Dentre eles, citaram o Lava-Pé, o Lindóia, as índias Juruta e Cambonja. O sogro do Paulo ainda tem guardado a espada e a estrela que usou durante a Guerra do Paraguai.
O título das terras o Imperador deu ao capitão Salazar. O avô do caboclo Paulo, enviou os índios Camilo Bezouro e Francisco Luiz de Ó à cidade de Passo de Camaragibe entregar o documento ao Dr. Uchoa de Mendonça, dono do Cartório. Este também era dono do Engenho Mirim[20].
Nos relatos ainda a antropóloga ouviu que o citado documento nunca foi dado entrada no Cartório e desapareceu. Os índios informavam que ele estava em poder de uma invasora, a matriarca da Família Mendonça, dona de um dos muitos engenhos instalados na área indígena.
Com os permanentes conflitos e diante das ameaças dos posseiros invasores desalojarem da parte de suas terras onde viviam os Wassú irão sempre recorrer à memória para reafirmarem seus direitos. Assim em 1981, a reportagem intitulada “Índios Wassú estão em ‘Pé de guerra’”, publicada pelo jornal Gazeta de Alagoas citava que o Cacique José Manuel de Souza afirmava que as terras “a eles foi doada por D.Pedro II, através do Capitão Salazar. A doação, segundo explicou foi uma recompensa pela bravura de guerreiros da tribo que foram lutar na Guerra do Paraguai”.[21]
Faz-se necessário entender os significados que os atuais indígenas no Nordeste dão à participação de seus antepassados na Guerra do Paraguai. Sabe-se que finda a Guerra o Governo Imperial, como “recompensa”, destinou além de honrarias militares, lotes de terras aos ex-combatentes. Quais leituras sobre essas “recompensas” que seus antepassados receberam por participarem na Guerra, fazem os índios que desde o último quartel do século XIX, acentuadamente após a Lei de Terra de 1850, enfrentam conflitos com tradicionais posseiros invasores das terras indígenas? Os Wassú assim como outros povos indígena no Nordeste, a exemplo do Xukuru do Ororubá e dos Fulni-ô em suas leituras estabelecem uma relação direta entre memórias, história e direito a suas terras.
O pesquisador francês Michael Pollak, ao discutir as relações entre memória e identidade social, afirmou ser perfeitamente possível que “por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase herdada” (Pollak, 1992:4).
A partir dos relatos Wassú acima, é possível entender das leituras que os indígenas fazem sobre a participação de seus antepassados na Guerra do Paraguai, dentre outros prováveis significados, que eles lhes deixaram como herança da vitória da Guerra. Uma conquista transmudada também em uma certeza da vitória na guerra em muitas batalhas por suas terras, pela reivindicação e reconhecimento de seus direitos históricos, que lhes garante o futuro. Apoiados na memória e a história que compartilham sobre o passado, da releitura que fazem de acontecimentos que escolheram como importantes, os atuais Wassú constroem e reconstroem sua identidade para afirmarem seus direitos enquanto um povo indígena.


Referências bibliográficas

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*Doutorando em História/UNICAMP. Mestre em História pela UFPE. Leciona História no CENTRO DE EDUCAÇÃO-Col. de Aplicação/UFPE. Membro do Laboratório de Estudos de Movimentos Étnicos-LEME/UFCampinaGrande.E-mail:edson.edsilva@gmail.com /ororuba@universia.com.br


NOTAS:

[1]O citado documento encontra-se transcrito no livro inédito Tribo Wassú: os caboclos de Cocal, de autoria do Prof. Clóvis Antunes (Antunes, 1985, p.12). Sou imensamente grato ao autor que generosamente me cedeu fotocópia dos originais do livro que se encontra no prelo.
[2]In Antunes, 1995, op. cit. p.17.
[3]Idem, p.20.
[4]Transcrito in Antunes, 1985, p.38.
[5]Ofício do Diretor Geral dos Índios de Alagoas, em Maceió 30/08/1866. In, ANTUNES, Clóvis. Índios de Alagoas: documentário. Maceió, Edufal, 1984, p.140-141.
[6]Of. do Diretor Geral dos Índios de Alagoas, em Maceió 28/09/1866. In, ANTUNES, op. cit. p.142.

[7]Of. de Felis Fridirico Soares de Albuquerque Baiano, a rogo de Antonio Joaquim de Souza Salazar, em 12/01/1860. In Antunes, 1985, p.26-27.
[8]Ofício de Jacintho Paes de Mendonça Junior, Diretor dos Índios de Cocal, em Engenho Carrilho 11/07/1850. In Antunes, 1985, p.22-23.
[9]Of. do Subdelegado do Distrito de Soledade, em 25/07/1864. In, Antunes, p.22-23.
[10]Of. do Diretor Geral dos Índios ao Pres. da Província de Alagoas em 1864. In, Antunes, p.25.
[11]Of. do Diretor Geral dos Índios ao Pres. da Província de Alagoas em 1864. In, Antunes, p.27
[12]In, Pereira, 2005, p.7.
[13]In, Antunes, 1985, p. 6-7.
[14]In idem, p.6.
[15]Citado em Antunes, 1985, p.10.
[16]In Antunes, 1985, p.10.
[17]Trecho de depoimento de Malaquias Figueira Ramos, 62 anos, em 12/11/1996, Aldeia Caípe, Terra Indígena Xukuru do Ororubá, Pesqueira/PE.
[18]In Antunes, 1985, p.10.
[19]In Antunes, 1985, p. 30-31.
[20]In, Antunes, p. 32.
[21]In Antunes, 1985, p.50.

ALDEIA DE ESCADA: ESBULHOS DE TERRAS E RESISTÊNCIA INDÍGENA EM PERNAMBUCO NO SÉCULO XIX

Caros amigos, este texto foi escrito pelo professor da UFPE e do Colégio de Aplicação, Edson Silva, doutor em História pela UNICAMP e grande historiador, especialista em História Indígena do Nordeste, este é o primeiro dos muitos textos que ele cedeu para este blog, que orgulhosamente irá publicar todos eles!



ALDEIA DE ESCADA: ESBULHOS DE TERRAS E RESISTÊNCIA INDÍGENA EM PERNAMBUCO NO SÉCULO XIX
Edson Silva
*

A invisibilidade dos índios na História
A história dos povos indígenas no Brasil, das relações entre os povos indígenas e os não-índios, ainda são muito desconhecidas. No geral, os estudos de História do Brasil, mesmo aqueles que representam abordagens críticas, minimizaram a presença indígena na história do país, relegando-a aos momentos iniciais da colonização. Essa visão permanece, salvo algumas poucas exceções, nos livros didáticos, no ensino em todos os níveis, inclusive no universitário. Uma visão etnocêntrica com múltiplas facetas, condenou e condena os povos indígenas à invisibilidade na História, sucumbidos diante da marcha da “civilização”.
Todavia, nos últimos anos surgiram diversos estudos, resultados de pesquisas em sua maior parte na área da Antropologia, estudos estes que se utilizando de novas abordagens, metodologias e conceitos, estreitaram as fronteiras com a História. Esses estudos, em suas novas abordagens, análises e reflexões, foram também uma resposta na busca de explicações ao fenômeno da presença, da emergência e da afirmação étnica de povos até então tidos como extintos ou “restos” condenados ao desaparecimento, nas regiões nas antigas da colonização portuguesa, como no caso do Nordeste. Foram produzidas significativas reflexões sobre a história indígena, que obrigou-nos repensar a história da colonização, a História do Brasil até então conhecida, ensinada, discutida.
No século XIX amparado pela legislação oficial, aconteceu um grande assalto às terras indígenas, principalmente a partir de meados do período, quando paulatinamente nas áreas de povoamentos mais antigos ocorreram os aumentos da concentração fundiários e, ao mesmo tempo, a população – formada por libertos, índios, negros e brancos pobres – tornou-se assalariada, passando a viver na periferia da grande propriedade.(Cunha, 1992:15). Em Pernambuco, a fertilidade da Região da Mata Sul com um solo propício ao cultivo da cana-de-açúcar e as proximidades com o Porto do Recife, estimularam a concentração de engenhos para a fabricação do açúcar. A lógica da economia agro-exportadora motivou ao longo do século XIX as invasões pelos senhores de engenho das duas aldeias indígenas (Escada e Barreiros) existentes na Região, e a expulsão de antigos habitantes dos seus territórios tradicionais.
Este texto objetiva evidenciar o protagonismo indígena em Pernambuco no século XIX, no momento em que o crescimento da produção e a modernização da indústria açucareira, ocorreram com grandes custos socais, com o esbulho das terras dos indígenas, que tiveram dentre seus direitos negados, até o de estarem presentes como ativos participantes em análises da história do período, a exemplo dos importantes estudos de Eisenberg (1977) e Melo (1984).

A aldeia mais rica da Província
A presença portuguesa, onde mais tarde seria constituída a Aldeia da Escada, remonta a fins do século XVI, quando religiosos franciscanos fundaram entre os Caeté uma missão que se estendia do extremo Sul de Pernambuco até o Porto das Pedras, atualmente em Alagoas. Posteriormente, a missão foi assumida pelos Jesuítas, tendo-a abandonado em 1635. Foram substituídos pelos Oratorianos em 1670, quando foi fundada a Aldeia de Nossa Senhora da Apresentação. Os Oratorianos para sua ação catequética construíram um oratório local destinado a uma devoção religiosa, no cimo de um morro acessado por uma escada de degraus cavados na terra. A partir de então a localidade passou a ser conhecida como Nossa Sra. da Escada e nos anos seguintes, apenas como Escada.
Registros históricos dão conta que os índios de Escada receberam por requerimento a Coroa Portuguesa, a doação de uma Sesmaria com uma légua de terra como recompensa pela participação nos combates ao Quilombo dos Palmares. Ao que tudo indica, se juntou aos antigos habitantes da missão em Escada outros indígenas envolvidos na guerra contra os quilombolas. Em 1774, os aldeados de Escada compraram mais uma sesmaria de uma légua de terra em quadro no lugar denominado Serra da Rola, a uma distância de duas léguas da Aldeia da Escada, passando assim a possuírem duas léguas de terras.
Situada a dez léguas da cidade do Recife (cerca de 62 Km), a Aldeia da Escada em 1861 era considerada oficialmente “a mais rica da Província” de Pernambuco, em virtude da reconhecida fertilidade do solo, em uma região com matas virgens e irrigadas por rios e numerosos riachos. Essa riqueza natural permitia uma vida economicamente estável aos aldeados, onde a maior parte deles possuía “casa de telhas e lavouras”, sendo inclusive o índio José Francisco Ferreira proprietário de dois engenhos de açúcar, os denominados Boa Sorte e Cassupim, “costeados” pelos próprios índios1.
A população indígena na época era oficialmente contabilizada em 292 pessoas, possuindo as famílias, em média, de dois a cinco filhos, existindo casos de famílias mais numerosas com até sete filhos. A maior parte dos indígenas morava em terras do Engenho Cassupim, estando os demais espalhados pelos diversos outros engenhos e localidades em Escada2.

Esbulhos de terras e estratégias de resistência indígena
O Diretor Geral dos Índios, no seu “Relatório” de 1861 sobre as aldeias da Província, afirmava terem aumentado as tradicionais invasões da área indígena em Escada. Os invasores “atraídos pela riqueza dos terrenos”, tinham construído 16 novos engenhos para fabrico do açúcar no lugar. Além dos engenhos, existiam trinta e oito pequenas propriedades, declarando a autoridade ser “necessário destinar alguns sítios para trabalho dos índios”.
Em 1868, o índio Manoel Ignácio da Silva, dirigiu um Requerimento ao Presidente da Província em seu nome e “em nome de seus companheiros índios aldeados na Freguesia da Escada”, solicitando a intervenção oficial para evitar não serem “ele e seus companheiros esbulhados dos terrenos” que possuíam no lugar conhecido como Propriedade das Minas. Afirmava o requerente que por possuírem os índios de Escada terrenos férteis, estes tinham sido “absorvidos por homens cobiçozos”. Os indígenas moradores em “Minas”, se organizaram após ameaças da perda total de suas terras para o proprietário do Engenho Amizade, que tinha prejudicado as plantações indígenas com águas represadas de um açude construído no local.3
O desejo da extinção da Aldeia da Escada foi sempre alimentado pelos senhores de engenho invasores das terras indígenas, com contínuos esbulhos das terras do aldeamento. Arrendatários oficialmente reconhecidos, através de vários subterfúgios boicotavam os pagamentos dos irrisórios valores devidos. Além disso, após a elevação do Povoado à categoria de Vila, com a instalação da Câmara de Vereadores em 1854, iniciou-se uma longa disputa pela posse das terras indígenas e da arrecadação dos fôros, envolvendo a Câmara, o Governo da Província, a Paróquia Católica e o Governo Imperial através do Ministério da Agricultura e da Fazenda Geral.
A implantação da Estrada de Ferro Recife-São Francisco e a inauguração da Estação de Escada em 1860 traziam novas perspectivas para a produção açucareira e motivou os desejos de expansão do povoado que se instalara ao redor da igreja onde foi a sede da missão religiosa junto aos indígenas. Com o crescimento do Povoado, a Câmara passou a solicitar insistentemente para o seu patrimônio as terras da Aldeia, cujos índios ou teriam “desaparecidos”, ou seriam em número tão “diminuto” podendo sobreviver sem os recursos recebidos pelos arrendamentos dos terrenos da Vila4.
Em Escada a oligarquia açucareira era formada por “um grupo de oito famílias inter-relacionadas”. Os senhores de engenho dominavam a política local, eram eleitos vereadores, ocupavam os cargos de Delegado de Polícia e no Judiciário, os postos da Guarda Nacional, o que significava uma força de controle social e, além disso, influenciavam a política provincial como deputados, tendo sido alguns contemplados pelo Governo Imperial com títulos de Barão e Visconde.
Com a decretação oficial da extinção da Aldeia da Escada, os índios foram transferidos para o lugar Riacho do Mato, em terras da Colônia Militar Pimenteiras, situada nos limites com a Província das Alagoas. A história da permanência indígena no novo aldeamento foi resultado da capacidade dos índios em terem elaborado várias estratégias de resistência diante das invasões de posseiros, da conivência ou omissão oficial frente aos conflitos gerados e até da pressão das autoridades para os recém-aldeados abandonarem o local.
Na documentação pesquisada encontram-se os diferentes meios utilizados pelos aldeados no Riacho do Mato, para resistirem e continuar no local. Tais meios podem ser situados num leque amplo: desde a colaboração, as alianças com autoridades de reconhecido prestígio social, até a denúncia, a reivindicação, o protesto pacífico ou com violência.
Através de abaixo-assinados os indígenas denunciaram as invasões e os esbulhos das terras por eles ocupadas, afirmaram seus direitos, apontaram as manobras fraudulentas do engenheiro responsável pela demarcação e reinvidicavam providências as autoridades para os desmandos e ilegalidades ocorridas. Reclamaram a demissão de Diretores na Aldeia e sugeriram nomes de substitutos; dispuseram-se ainda a assumir as despesas com os diretores por eles indicados e, assim, não somente apresentavam propostas como apontavam para uma autonomia de decisões, um autogoverno, frente à política indigenista oficial em vigor.
Por não saberem ler e escrever, os indígenas aldeados no Riacho do Mato recorreram em diversos momentos a muitas pessoas para redigirem “a rôgo de” (a pedidos) os documentos a serem endereçados às autoridades. O que faz presumir terem os indígenas conquistados pessoas colaboradoras, quem sabe simpáticas à causa indígena. Um exemplo disso é a reprodução do “Bilhete” encontrado entre os documentos referentes à Aldeia da Escada,
“Cheige em Palácio falle com o Alves ou com o Lima, aquelles que se encarregarão do requerimento do Valentim, para elles se encarregarem do saber se é ezato ezistir na Prezidencia vinda da corte os documentos pertencentes aos índios do Rmto, dos quaes é Maioral Valentim dos Santos, cujos documentos s tendentes a uma representação de queixa ao Governo, sendo por cincoentas Índios, contendo um mapa nominal de noventa familias: e que serão gratificados pela afirmativa”.5

No campo das alianças, os indígenas recorreram a autoridades e pessoas influentes para conceder-lhes “atestados” de serem eles “trabalhadores”, “obidientes e respeitadores” das autoridades e da ordem social vigente, e ainda declarações de que eles prestavam sempre o “serviço público” de polícia e de nunca se pouparem em “sacrifícios” em defesa do “Trhono Imperial”, barganhando assim uma relação de troca para garantia de seus interesses. Por quatro vezes, enviaram representantes à Corte no Rio de Janeiro, na tentativa de reividicarem pessoalmente ao Governo Imperial, a permanência no Riacho do Mato.
Mas também, por outro lado, os indígenas aldeados no Riacho do Mato foram acusados de “insubordinação” ao se recusarem colaborar nos serviços demarcação, quando perceberam que estavam sendo beneficiados os posseiros invasores das terras destinadas ao aldeamento. Em um grupo reagiram com “gritaria” à colocação dos marcos em limites que favoreciam os posseiros. Incendiaram o engenho de Manoel Francisco da Silva e o de propriedade de “Pedro Brabo”, ambos também posseiros nas terras do aldeamento.
Organizados, agindo coletivamente ou através de ações individuais, os indígenas criaram, enfim, diversas formas de vivências e resistências para continuarem ocupando as terras onde estavam. Nesse processo foi significativa a liderança e o papel do índio Manuel Valentim dos Santos. Homem decidido, persistente e polêmico, hábil negociador de apoios e alianças à resistência dos aldeados. Foi ele quem esteve na Corte. Foi ele contundente quando denunciou e pediu providências contra as invasões das terras destinadas ao novo aldeamento após a transferência da Aldeia da Escada.
Com firmeza Valentim enfrentou muitas situações adversas, acusações, perseguições de autoridades provinciais ora coniventes, ora omissas com as invasões das terras indígenas. Pressões e intolerâncias da própria Diretoria dos Índios, expressadas pelas afirmações sistemáticas do não reconhecimento do Aldeamento do Riacho do Mato. Valentim vivenciou com suas contradições, emblematicamente o que ele mesmo disse ser em um requerimento ao Presidente da Província: “uma guerra civil”. Atestada nas experiências de resistências na busca da sobrevivência e afirmação dos direitos indígenas no último quartel da segunda metade do século XIX em Pernambuco.
Um conflito interminável
A negação da identidade indígena foi o argumento maior utilizado para justificar os esbulhos das terras e a decretação oficial da extinção de antigos aldeamentos no século XIX. O que ocorreu acentuadamente a partir de meados do período, quando apoiada por mecanismos legais aumentou a expansão agrícola sobre as terras indígenas, em um cenário de crescente discussão a respeito do emprego da mão-de-obra na lavoura em substituição ao trabalho negro escravo e, ainda, dos debates acerca da mestiçagem no país.
Pela ótica oficial, ao Estado cabia no máximo a prática de uma política indigenista de caráter filantrópico “para com os pobres e miseráveis” índios que ainda restavam. Ao invés do reconhecimento e a garantia dos direitos indígenas, eram estabelecidas relações paternalistas através das “doações” de pequenos lotes em áreas cujos aldeamentos à revelia dos seus habitantes, foram declarado extintos, como legitimação para os poderes dos usurpadores das terras indígenas.
Em 1871 o Ministério da Agricultura, em complemento a um aviso anteriormente expedido, destinava “quatro contos de réis” para serem aplicados na fundação de duas colônias agrícolas nas terras da extinta Colônia Militar de Pimenteiras. Uma das novas colônias propostas seria no Riacho do Mato, aproveitando-se terras do Aldeamento.6 Em 1873 foi oficialmente declarado extinto o Aldeamento, sendo determinada a medição e demarcação dos terrenos destinados em lotes individuais aos índios. Com isso os posseiros invasores não-índios foram reconhecidos, muitos indígenas deixavam de ser contemplados com os lotes e multiplicavam-se, como se encontra na documentação sobre a Aldeia da Escada, os requerimentos de índios apelando por seus direitos.
Em Requerimento acompanhado de abaixo-assinado de 1876, os índios denunciavam à Presidência da Província a demarcação fraudulenta, os esbulhos violentos, perseguições, agressões, mortes e prisões, exigindo que fossem respeitados os seus direitos.7 Outros exemplos são ilustrativos. Naquele mesmo ano, Manoel Félix Honorato, índio da Aldeia da Escada, dirigiu um Requerimento no qual solicitava ao Presidente da Província, “V. Excia., que se digne mandar passar o título, e demarcar o terreno que lhe compete, para o que só falta o despacho de V. Excia. por já ter o suplicante provado ao Dor. Juiz Commisario direito a justa petição”. Na mesma página do requerimento, lê-se o despacho do Presidente da Província: “Prove o supplicante que é indio, devendo apresentar-se à Commisão encarregada da demarcação do extincto Aldeamento do Riacho do Mato para verificar se a identidade de pessoa afim de lhe ser concedido o lote de terras que requer”.8
Um segundo caso, o de Angélica Maria do Nascimento, “índia da extincta aldeia da Escada”, que 1878 se dirigiu também através de um Requerimento ao Presidente da Província, para “pedir a exemplo de outros em igoaes condições, que lhe seja dado nos terrenos do Riacho do Mato um lote de terra, onde possa a supplicante trabalhar e viver com a sua família, pois que, além do mais, ella é viuva e tem a seu cargo a sustentação de quatro filhos”. Em nada valeu o apelo da “pobre índia companheira de infortúnio dos que foram desapossados e expellidos da Aldeia da Escada”, nem tão pouco o atestado comprovando sua condição de índia, concedido pelo vigário da Paróquia da Escada, uma vez que neste mesmo documento encontra-se o despacho do Pres. da Província: “Por ora não pode ser atendida a supplicante”.9
A Colônia Agrícola Socorro fundada em 1878 pelo Presidente da Província com autorização do Governo Imperial em terras consideradas devolutas no Riacho do Mato, concentrava retirantes vítimas da terrível seca de 1877. A presença dos retirantes provocou conflitos com os índios que tiveram suas plantações invadidas, como denunciava Manuel Valentim. A Colônia foi extinta em 1880 e nos primeiros anos do período republicano, as terras do Riacho do Mato foram objeto de disputa entre o Governo Federal, a Câmara de Água Preta e o Governo do Estado de Pernambuco, que pretendia vendê-las a terceiros. Em 1892 o índio Manoel Severino dos Santos herdeiro de um terreno que pertencera a seu irmão, denunciava que estava sendo coagido pelo Capitão Manoel de Souza Leão, dono do Engenho Laranjeiras, solicitando providências ao Governador do Estado.10
A lavoura canavieira na área onde existira o Aldeamento do Riacho do Mato recebera grande impulso com o avanço da Estrada de Ferro Recife-Palmares. Esta ferrovia atravessava a Mata Sul, considerada a região açucareira mais rica de todo o Império, onde de 1857 a 1877 duplicou o número de engenhos (Melo, 1984: 207-208). O “novo sul” que surgira a Oeste de Água Preta, teve custos sociais bastante elevados. A grande produção favorecida pela via-férrea fortaleceu uma economia agro-exportadora baseada na monocultura da cana, na manutenção das estruturas socais vigentes. Assim como outros segmentos vivendo à margem desse sistema, o indígena permanecia sem lugar...
Nos últimos decênios do século XIX , entre 1860 e 1890 vários aldeamentos indígenas em Pernambuco foram oficialmente declarados extintos: Baixa Verde (atualmente Triunfo), Escada, São Miguel de Barreiros, Riacho do Mato, Ipanema (hoje Águas Belas) e Tacaratu Em 1878, Adelino Antônio de Luna Freire, o então Presidente da Província em seu Relatório Anual afirmava:
Existem ainda dois aldeamentos, o de Cimbres [atualmente Pesqueira] e Assunção [atualmente Cabrobó], cuja existência não tem mais razão de ser, seus habitantes confundidos com a população, esquecidos de seus usos primitivos, vivem em contínuas lutas com os usurpadores de seus terrenos e confinantes, que ambicionando alargar seus domínios, praticam contra esses miseres entes as mais cruéis perseguições.
(in Moreira Neto,1971: 310). (grifamos).
Também foram declarados extintos Assunção e Cimbres, este último em 1879.

Hoje a imprensa continuadamente vem noticiando a mobilização e a ocupação por grupos de sem-terras em engenhos de Água Preta e dos municípios próximos – herdeiros e herdeiras dos ex-aldeados em Escada e no Riacho do Mato (hoje possivelmente Município de Jaqueira), que refazem a vida e reinventam a história.

NOTAS
1. Ofício do Diretor Geral dos Índios, em 4/12/1861, ao Presidente da Província de Pernambuco. Arquivo Público Estadual de Pernambuco (APE), Códice DII-19, folhas 38-40.
2. “Relação nominal dos índios existentes na Aldeia da Escada”, anexos ao “Relatório do estado das Aldeias da Província de Pernambuco”, pelo Barão dos Guararapes, em 13/02/1861. APE, Cód. DII-19.
3. Requerimento ao Pres. da Província, em Escada 28/11/1868. APE, Petições: Índios, fl.40.
4. Ofício da Câmara de Escada, em 12/02/1860 ao Pres. da Província. APE, Cód. CM-43, fl.52.
5. O “Bilhete” s/d. também não consta o remetente ou a quem era endereçado. APE, Cód. Petições: Índios, fl. 91.
6. Ofício ao Pres. da Província de Pernambuco, em 20/09/1871. APE, Cód. MA-6, fl.98.
7. Requerimento recebido na Secretaria do Palácio da Pres. da Província em 20/09/1876. APE, Cód. Petições: Índios, fls. 45-46.
8. Requerimento de Manoel Félix Honorato, índio da Escada, ao Pres. da Província em 28/03/1876. APE, Cód. Petições: Índios, fl.43.
9. Requerimento (acompanhado de “Attestado”) de Angélica Maria do Nascimento ao Presidente da Província, em 25/01/1878. APE, Petições: Índios, fls. 47-48.
10. Requerimento (por Ignácio Ferreira Lopes) em 15/02/1892, ao Governador do Estado de Pernambuco. APE, Cód. Petições: Índios, fls.126-127.

BIBLIOGRAFIA
CUNHA, Manuela C. da. Legislação indigenista no século XIX: uma compilação: 1808 -1889. São Paulo, Edusp, 1992.
MELO, Evaldo C. de. O Norte agrário e o Império. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.
MOREIRA NETO, C. de A. A política indigenista brasileira durante o século XIX. Rio Claro, FFCH, 1971. (Tese de Doutorado em História).
EISENBERG, Peter. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco, 1840 –1890. São Paulo, Unicamp, 1977.
SILVA, Edson. O lugar do índio. Conflitos, esbulhos de terras e resistência indígena no século XIX: o caso de Escada (PE), 1860 – 1880. Recife, UFPE, 1995 (Dissertação de Mestrado em História).
___________. Resistência indígena nos 500 anos de colonização. In, BRANDÃO, Sylvana. (Org.). Brasil 500 anos: reflexões. Recife: Ed. da UFPE, 2000, pp.94-129.
___________. “Confundidos com a massa da população”: o esbulho das terras indígenas no Nordeste no século XIX. In, Revista do Arquivo Público Jordão Emerenciano, vol.42, nº 46, Recife, dezembro de 1996, pp.17-29.
VALLE, Sarah M. A perpetuação da conquista: a destruição das aldeias indígenas em Pernambuco no Século XIX. Recife: UFPE, 1992. (Dissertação de Mestrado em História).



*Doutorando em História Social da Cultura na UNICAMP. Mestre em História pela UFPE. Leciona História no CENTRO DE EDUCAÇÃO-Colégio de Aplicação/UFPE. Membro do Laboratório de Estudos de Movimentos Étnicos-LEME/UFCampina Grande.
E-mail: edson@cap.ufpe.br / ororuba@universia.com.br

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Questão da violência

Por Otto Mendes
O Brasil parou chocado com o assassinato do pequeno João Hélio, e a sociedade com o apoio da mídia e de alguns políticos querem uma punição mais severa para crimes tão horrendos, o choque da terrível morte inflamou os corações dos brasileiros. O Senador Antônio Carlos magalhães apareceu no Jornal nacional dizendo que não interessa se a pessoa tem 60 anos ou 16 anos, crimes bárbaros devem ser punidos severamente. Concordo com os cidadãos e com o senador, mas queria dizer ao caro político, que existe um outro tipo de crime tão bárbaro quanto o que foi cometido contra aquela criança: a corrupção! Políticos, empresários, empreiteiros, banqueiros, juízes, funcionários públicos e policiais roubam o dinheiro do povo e tem a certeza de que não serão punidos NUNCA!
Questão social
A raiz das desigualdades sociais e da violência está no problema da corrupção, pois o dinheiro saqueado do povo brasileiro deixa de ser usado em beneficio da sociedade. nem as elites, nem politicos tem interesse em acabar com este mal, pois foi a corrupção que erigiu as grandes fortunas do Brasil e é através dela que as elites se mantem no poder. O Congresso Nacional cria leis onde só os pobres é que podem ser presos, os ricos nunca!
Se os milhares de excluídos brasileiros fossem considerados, pelo governo e as elites (tudo a mesma coisa), cidadãos de verdade e tivessem acesso a educação e saúde de qualidade e participassem da distribuição dos beneficios que a modernidade disponibiliza para poucos, se o governo e a sociedade olhassem estes excluidos como gente, talvez o pequeno João Hélio ainda estivesse vivo! Mas, o dinheiro que deveria beneficiar, principalmente as populações mais carentes, vai, através da corrupção, parar no bolso das elites do país e com isso o Brasil não consegue sair do lugar. O que sobra para investir é canalizado para atividades que não trazem nenhum beneficio para o país, ao contrário só prejuízos, como, principalmente, o agronegócio, uma atividade econômica que prevalesse no Brasil a 500 anos, e os pobres vão ficando cada vez mais despossuídos.
Por tudo isso, a maior luta do povo brasileiro é transformar a corrupção em crime hediondo, pois quando um safado deste rouba, o resultado é gente morrendo nos corredores dos hospitais públicos, morrendo de fome e sede, cidadãos sendo excluídos da sociedade, crianças entrando para o mundo do crime. Um corrupto é pior que qualquer outro criminosos, porque ele é genocida, merece uma punição severa. Essa escória mantem a maior parte da população brasileira sem acesso a educação de qualidade para não perderem seus privilégios, pois um povo educado nunca ia aturar esses vermes que infestam o Congresso Nacional( o
ninho principal da escória), o Executivo e o Legislativo.
A lei só mudará se nós, cidadãos brasileiros formos para as ruas pressionar esta escória a votar leis que NOS beneficiem. Eles nunca farão isso por vontade própria.
Vamos combater esses marginais!
Só depende de nós!

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Pacto com a Morte

Vale a pena ler este texto de Mário Santayana sobre a questão da viôlencia.
Aproveitem!!!


O pacto com a morte

Neste momento em que parlamentares e jornalistas incentivam uma reação irracional contra os assassinos do pequeno João Hélio, levantando até idéias como a pena de morte, vale discutir como são construídos os criminosos no Brasil.

Mauro Santayana

Quando uma jovem da alta classe média paulista – Suzana Richthofen - planejou e participou do assassinato de seus pais, trucidados, enquanto dormiam, a golpes de barras de ferro pelo namorado e o irmão dele, ninguém pediu a pena de morte para a moça. Ao contrário: surgiram comunidades de internautas, dizendo que a amavam. Da mesma forma, quando um índio pataxó foi queimado, enquanto dormia, para o divertimento de rapazes da alta classe média brasiliense, respeitável juíza do Distrito Federal quis desclassificar o crime, a fim de evitar que fossem levados ao tribunal do júri. Algumas das pessoas de bem da capital da República se mobilizaram, a fim de desculpar os assassinos. Eles estavam apenas querendo “brincar” com o índio. Depois se soube que os rapazes estavam sendo privilegiados na prisão: um deles saía para freqüentar o curso universitário e, entre o fim das aulas e o retorno a uma cela especial da penitenciária, tomava cerveja com os amigos.
É claro que nos revolta muito mais a morte de uma criança de seis anos, da forma brutal como ela se deu, do que a execução de duas pessoas de meia-idade, e a de um remanescente dos bravos tapuias do litoral da Bahia, membro de pequena tribo que escapou do extermínio secular.
A morte por nada
O que choca, ainda mais, no caso do menino João Hélio, é a extrema precariedade da vida nas grandes cidades brasileiras. Morre-se sem nenhuma explicação, como se todos nós andássemos com uma pistola carregada, jogando a roleta-russa. Quando menos se espera, a única bala fica diante do percussor, e o dedo invisível das circunstâncias dispara o gatilho. Se a mãe do menino houvesse passado pelo local cinco minutos antes, ou cinco minutos depois, talvez nada houvesse ocorrido. Ao sair do centro espírita naquele exato momento e ao escolher aquele trajeto, a senhora estava, para seu desespero, entregando o filho ao despropositado martírio.
Todos nós nos sentimos atingidos pelo crime, mas não temos a mesma carga de sofrimento e de ódio que atinge os pais do garoto. Eles têm todo o direito de exigir punição mais severa para os criminosos – até mesmo a morte – incluída a do menor que participou do assassinato. Se pensarmos no que sentiríamos se isso ocorresse a qualquer um de nós, não há limite para o ódio, não há como conter o desejo de vingança pessoal. Qualquer pai seria capaz de matar o assassino de seu filho, ou de sua filha, como tem ocorrido. A senhora, que matou a facadas o adolescente que violentara seu filho pequeno, fez o que muitos de nós seríamos capazes de fazer.
Quando crimes tão bárbaros são cometidos há uma reação coletiva irracional. É o que está ocorrendo agora, quando se pede a pena de morte para os assassinos do pequeno João Hélio. E essa reação é tão mais despropositada quando parte de alguns dos mais poderosos meios de comunicação de massa em nosso país. É o momento da desforra de parte da classe média contra os que defendem os direitos humanos. Jornalistas e parlamentares recorrem aos adjetivos mais fortes, arregalam os olhos, gesticulam, pedindo que o Estado exerça vingança implacável contra os assassinos. Eles se esquecem de que todos nós, criminosos ou não, já estamos condenados à morte. E se esquecem também de que a execução de qualquer criminoso, seja jovem ou velho, não é exatamente um castigo. A agonia de um condenado dura, quando muito, alguns segundos. Depois disso, é o nada. A prisão por bom tempo, nas condições carcerárias do Brasil de hoje, talvez seja punição bem pior do que a morte.
A construção de um bandido
Como se faz um criminoso? Os criminosos, salvo os casos de psicopatia congênita, são construídos, não nascem feitos. A nova deputada federal Marina Magessi, veterana policial carioca, não pode ser apontada como esquerdista, fanática defensora dos “direitos dos bandidos”. Ao contrário: sempre foi vista como “durona” na ação policial. Em recente depoimento à TV Câmara, em companhia do rapper MV Bill, Marina Magessi lembrou que o dia mais difícil da sua vida foi o do assalto ao ônibus da linha 174, em 2000, no Rio, porque teve que prender uma menina de 12 anos, envolvida no incidente. Ela resume o problema, ao dizer que nesses episódios não há algozes: só há vítimas. A menina era tão vítima como Sandro do Nascimento o assaltante, um sobrevivente do massacre da Candelária, que seria assassinado logo em seguida pela polícia, e a jovem Geisa Gonçalves, morta durante a intervenção policial.
“Não é a pobreza que leva ao crime, mas, sim, a falta de inclusão” – disse a mesma senhora, em outra oportunidade. “No Rio, essas crianças não pertencem a nada. Não têm família, não têm igreja, não têm Estado”. Se quisermos ir mais fundo no problema, devemos deixar os limites das favelas, do Rio de Janeiro e do Brasil. Escolhemos nessa pobre cultura universal contemporânea, induzidos pelos meios de comunicação de massa, sobretudo do cinema e da televisão, modelo de vida que pode ser definido como o de pacto com a morte. Passamos parte de nossa vida vendo as balas penetrarem na testa de bandidos ou não, acostumamo-nos com o jorro de sangue e, em certos casos, experimentamos voluptuosa emoção diante dos corpos que tombam. Mesmo os homens mais velhos se recordam da influência do cinema nos jogos infantis - e a violência daquele tempo era quase inocente, diante da que nos chega, pela televisão, todos os dias. Brincava-se, então, de artista e bandido. Os heróis eram artistas, e os vilões, os bandidos. Era o mito da “violência positiva”, que os norte-americanos haviam criado, com suas “short-stories”, destinadas a distrair os trabalhadores imigrantes do início do século XX, que depois passaram a ser filmadas por judeus húngaros, em Hollywood. Ainda que houvesse, em contraponto, a arte de Chaplin e outros, o mito da violência acabou prevalecendo. Chaplin era um realizador para quem conseguia pensar. Hoje, crianças de três, quatro anos, treinam para matar nos vídeo-games, em que, do sangue que espirra dos atingidos pelas balas virtuais, só falta o cheiro da morte. Os super-heróis ganharam a força dos elétrons.
O Brasil não é pior
Há quem debite a violência brasileira ao nosso caráter. É uma conclusão estúpida. O Brasil tem cerca de duzentos milhões de habitantes, e uma exígua parcela dessa população se envolve em episódios violentos, seja no campo ou nas cidades, maiores e menores. Os criminosos não chegam a meio por cento da população. Crimes horripilantes – como os de canibalismo - ocorrem no berço da civilização ocidental, que é a Europa, isso sem falar nos Estados Unidos, onde meninos de dez, onze anos, matam seus colegas de escola a tiro limpo. As penas são pesadíssimas e, em alguns Estados, como o Alabama, o Arizona, e Lousiana, crianças de qualquer idade poderiam ser condenadas à morte até 1º de março de 2005, quando a Suprema Corte proibiu a execução de menores de 18 anos, com base na oitava emenda da Constituição, que proíbe castigos cruéis. Nem por isso a criminalidade juvenil nos Estados Unidos se viu reduzida.
A juíza e a policial
A presidente do Supremo Tribunal Federal, Ellen Gracie, fez a observação certa: os legisladores não podem agir sob a pressão das circunstâncias. É necessário ver todos os ângulos do problema. No caso, com toda a diferença biográfica entre a jurista e a inspetora de Polícia que se elegeu deputada, as duas se encontram do mesmo lado da razão. Para uma é preciso que a lei esteja dentro da lógica do direito; para a outra, que conhece a realidade de perto, é muito difícil distinguir entre algozes e vítimas. E, já que citamos o rapper MV Bill, não podemos desprezar o seu duro libelo, pelo menos no que toca ao tráfico de drogas. É o viciado da classe média (ele também uma vítima de um modo de vida opressivo) que faz o traficante. E podemos levar o tema mais longe: são os viciados norte-americanos e europeus – e os que “lavam” o dinheiro sujo do tráfico - que promovem o cultivo da coca na América do Sul e o da papoula no Afeganistão, crescente mesmo com a invasão militar estrangeira. É bom não esquecer que os ingleses moveram duas guerras contra a China (a segunda delas aliados aos franceses) porque o governo chinês proibira o uso do ópio, e a puritaníssima Inglaterra, da Era Vitoriana, era exportadora do narcótico, cultivado na Índia, para o grande mercado do Império do Meio. O mundo anglo-saxão tem todas as razões para temer uma revanche amarela.Enfim, estas são algumas reflexões para os que não se divertem com o carnaval.

Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976-82), de que foi colunista político e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte.Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares

Cordel da Farsa da Transposição



O PODER DA FARSA
Por Araci Cachoeira

Peço licença ao leitor
Para de algo chato eu falar,
Mais do que chato é cruel
O que eu tenho para tratar,
Sobre o atrevimento do homem
Querendo um rio transportar.

Desde que mundo é mundo
O rio sabe onde correr,
É traçado o seu percurso
E o que temos a fazer,
É cuidar da vida dos rios
Preservar é um dever.

Num tempo que já se foi
Chamado de desbravação,
O Rio São Francisco foi o celeiro
O pai da alimentação,
Peixe de toda espécie
Ali tinha de montão.

Quando os povos indígenas
Da natureza cuidava,
As margens do São Francisco
Alimentos não faltavam,
Porque indígena e natureza
A mesma língua falavam.

Mas foi exatamente o fato
De desbravar sem medir,
Que acabou com as matas
Fez o rio diminuir, este tal desbravamento
Fez a fartura sumir.

Sumiu peixes, sumiu matas
Se some a mata, some a caça,
Resseca a terra, acaba as plantas
Falta comida na praça,
O povo é que paga o pato
São as vítimas da desgraça.

Assim foi com muitos rios
Do nosso imenso Brasil
Numa manobra sutil
Secaram muitas nascentes
Deste torrão varonil.

O motivo nós sabemos
Fazer campos de pastagem,
Criar gado foi a razão
Da enorme malandragem,
Que fez os fazendeiros
Levar nascentes à secagem.

Estou começando das nascentes
Para chegar nos afluentes,
Pois elas é que são as veias
Que levam a água em frente,
Secando a fecundação
É claro que o rio sente.

Quero fazer um pedido
Pensem na situação,
Onde brotavam nascentes
Muitos já não têm vazão
O rio São Francisco vai minguando
Por causa da devastação.

Mesmo com esta realidade
Que até leigo compreende,
Falam na transposição
Que pouca gente defende
Pois é uma farsa montada
Que a um jogo de interesse atende.

Parece um ato de loucura
Um delírio uma surtação,
Mas é o que está acontecendo
Na nossa grande nação,
Um projeto faraônico
Chamado transposição.

A vítima de tal desatino
É o Velho Chico famoso,
Que outrora foi navegável
Um tesouro precioso,
Com muita água e peixe
Era um rio farturoso.

Hoje o Rio são Francisco
Nos causa revolta e tristeza,
Ao invés da revitalização
De refazer a beleza,
Falam em transpor o rio
Isso é agredir a natureza.

Quem não consegue entender
A tal de transposição,
Imagine um enorme canal
Que na verdade é uma ilusão
Carregando o São Francisco
Daqui lá pra o Sertão.

Usam a palavra sertão
Para tentar enganar,
O problema do sertanejo
Não é o rio lá chegar,
Para água lá encontrar.

A transposição do rio São Francisco
É uma farsa do poder,
Que usa o nome dos pobres
Dizendo que vai abastecer,
Água para os estados
Que não tem onde beber.

Neste jogo de interesse
Engana-se quem está achando,
Que a água é para os pobres
Onde estaria o rio chegando,
Na verdade serão os empresários
Que ali vão estar mandando.

Esta mega operação
Que vai nos custar bilhões,
É um desastre para o meio ambiente
E não nos dá soluções,
Ignora os ribeirinhos
E outras populações.

Vai continuar sem água
Quem dela hoje depende,
Os projetos de exportação
É o que o império defende,
Sem ter clareza o projeto
O povo pouco entende.

Não se pode transpor um rio
Com a vazão comprometida,
O rio são Francisco pede socorro
Contra esta ação desvairada,
Ao invés de transposição
Protejamos sua vida.

Ao invés de levar a água
Fazer com que ela aumente,
Cuidando das margens do rio
Dos afluentes e nascentes,
Revitalizem o Velho Chico
Sejam um pouco inteligentes.

Hoje se o povo reclama
É por não se conformar,
Depredaram o meio ambiente
E ainda querem tirar,
O que ainda sobrou
Estão tramando acabar.

Como se não bastasse
A tragédia da barragem,
Inventaram esta vergonha
Esta grande malandragem,
Achando que o povo é trouxa
De apoiar a sacanagem.

Aproveitando a oportunidade
Vou aqui esclarecer,
Quem é contra a transposição
Não é egoísmo, não é querer
Ficar com a água para nós,
É questão de defender.

Defendemos um rio comprometido
Que precisa de cuidado,
Porque entendemos que o rio
Hoje está condenado,
A um futuro de extinção
Por um projeto decretado.

Egoísta na verdade
É quem defende a transposição,
Para atender interesses
Do lucro de exportação,
De hortifrutigranjeiros
E também de camarão.

Isto sim é egoísmo
Querer os carentes tapear,
Usando o nome deles
Para um projeto aprovar,
Falam em gerar emprego
Para o povo enrolar.

Se o problema da seca
Fosse assim resolvido,
É claro que ninguém ia se opor
A gente já teria entendido
Mas sabemos que está errado
Este é um plano falido.

Do custo da grande obra
Não precisa nem a metade,
Para aplicar em projetos
Que resolve de verdade,
O problema da falta d’água
Mudando a realidade.

Por que não fazem o certo?
É fácil de entender
Pequenas obras
Não dá fama nem poder,
Uma obra faraônica
É coisa para aparecer.

Cacimbas e captação
Água em armazenagem,
Isto ajuda o povo
Mas não vai dar reportagem,
Por isto é que preferem
Fazer a grande drenagem.

Se aplicar certo os recursos
Tanto lá como cá,
Capta a água no Nordeste
Aqui reflorestamento vai implantar,
Revitalizando as nascentes
Fazendo a água brotar.

O povo do Nordeste
É um povo inteligente,
Sabe avaliar muito bem
Pensar no mais pra frente,
Hoje o que temos a fazer
É cuidar do meio ambiente.

Gritam os povos indígenas
Lamentam os agricultores,
Ribeirinhos, quilombolas,
Estudantes, professores,
Abominam a idéia
Dos insensatos senhores.

Mas já que insistem na burrada
Avisamos mesmo sofrendo,
Vai haver uma tragédia
O povo está se movendo,
Que a obra vai ser barrada
Todos estão sabendo.

A mobilização já é grande
Para o projeto embargar,
O povo de mala e cuia
No local vai acampar,
Vão ter que pensar duas vezes
Se não vão se ferrar.

Vamos por o pé no barranco
Nós não vamos desistir,
Se é briga que quer o poder
A briga vai existir,
Em torno do Rio São Francisco
Muita gente vai se unir.

Não pensam que vai ser fácil
Com esta farsa do poder,
Do lado de lá tem a grana
Mas do lado de cá tem o querer,
De um povo que está disposto
O Velho Chico defender.

Pelo Rio São Francisco
Contra a transposição,
Uma corrente de forças
Um esforço, um mutirão,
O povo já se levanta
“Dizendo o rio não vai não”.

Belo Horizonte, 09/10/2006

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Palavrões

As duas piores ofensas que um ser vivo pode sofrer é ser chamado de Diogo Mainardi ou de Jorge Bornhausen.
Nem nossos piores inimigos merecem uma humilhação dessas!

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Galera, leiam esta entrevista sobre a transposição!




Sei que estou insistindo muito neste tema, mas é uma quetão grave o que o governo Lula está querendo fazer para ajudar seus amigos empreiteiros.

“Dizer que transposição resolve problema da água é mentira” (Entrevista Henrique Cortez - Articulação no Semi-Árido Brasileiro) Agência Carta Maior22/12/2004
ESPECIAL SÃO FRANCISCO
Para o consultor da Articulação no Semi-Árido (ASA), Henrique Cortez, este projeto de transposição do São Francisco não garantirá o acesso à água àqueles que tanto precisam do recurso. Nesta entrevista, ele afirma que o governo Lula sabe disso e mesmo assim insiste na idéia. Bia Barbosa 22/12/2004 Recife – A Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA) é uma rede de mais de 800 organizações da sociedade civil – entre sindicatos de trabalhadores rurais, associações de agricultores, cooperativas de produção, igrejas católicas e evangélicas e ONGs ambientalistas – que trabalham pelo desenvolvimento social, econômicos, político e cultural de uma das regiões mais excluídas do país. Criada em Recife em 1999, durante o Fórum Paralelo à Conferência de Combate à Desertificação e à Seca, a ASA vem se consolidando como um espaço coletivo de centenas de experiências de uma grande parcela da população brasileira que luta todos os dias por um semi-árido justo e igualitário. Deixando de lado o falso discurso de combate à seca, a articulação atua na proposição e implementação de políticas públicas que promovam a convivência com as condições climáticas locais para garantirem o desenvolvimento sustentável nos onze Estados que englobam a região. Um dos principais projetos da ASA é o P1MC – Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semi-Árido: Um Milhão de Cisternas Rurais. O programa tem como meta construir, em cinco anos, um milhão de cisternas de placas na região, que proporcionarão água limpa e de qualidade para cinco milhões de pessoas. Em pouco mais de um ano, o P1MC construiu 50 mil cisternas, que já beneficiam 260 mil pessoas, e possibilitou o aumento da frequência escolar, a diminuição do número de pessoas com doenças em virtude do consumo de água contaminada e a geração de emprego e renda para os morados das comunidades onde as cisternas foram construídas. É nessa linha de convivência – e não combate – com o semi-árido que as organizações que integram a articulação têm se posicionado fortemente contra o projeto governamental de transposição do rio São Francisco. Na última série de reportagens especiais da Agência Carta Maior sobre o tema, uma entrevista com Henrique Cortez, jornalista, engenheiro, ambientalista e consultor da ASA, acerca desta polêmica, concedida durante o Fórum Social Nordestino, realizado no último mês em Recife. Nesta boa conversa, Cortez explica porque é inviável fazer a transposição do Velho Chico antes de sua revitalização, os interesses que estão por trás de quem banca do projeto dentro do governo e qual seria a chance de barrar essa transposição tão questionada por aqueles que têm sede e que, na teoria, seriam os mais interessados em receber as águas do São Francisco.
CM - A ASA defende, antes da transposição, a revitalização do São Francisco. Ideologicamente você é contra a transposição?
Henrique Cortez – É uma história complicada. Transposição significa tirar água de uma bacia hidrográfica e levar para outra. É uma tecnologia de mais de 100 anos, o mundo inteiro faz isso. A cidade de São Paulo recebe água de transposição do rio Piracicaba. A cidade do Rio de Janeiro idem. Existem casos de transposição excelentes e existem desastres. O problema não está na transposição, mas na concepção técnica e na realização da transposição. Tecnicamente falando, como engenheiro, eu diria que é muito simples. Ideologicamente, como ambientalista, também sei que é perfeitamente possível fazer isso de forma responsável, com danos ambientais facilmente mitigáveis, sem grandes dramas. Uma barragem causa muito mais estrago. A questão não está nisto. A questão é que os três temas mais relevantes não estão sendo atendidos neste projeto – que é o mesmo projeto do governo anterior (as mudanças são mínimas) e que não deve ter sido muito diferente do projeto do D. Pedro II, de 1847. O primeiro deles é a revitalização do São Francisco. Não existe banco de sangue que aceite doação de doador anêmico. O rio está morrendo. O mar já entrou 50 km dentro do rio, já se pesca robalo, que é um peixe exclusivamente de água salgada, a 50 km da foz. Mas a revitalização é algo complicado, é demorado. Precisa de um grande pacto nacional. Primeiro, recuperar os mananciais, os olhos d’água, as nascentes, fazer a revegetação – são mais de dois bilhões de mudas de árvores a serem recuperadas, milhões de hectares –, acertar a questão fundiária de quem está hoje instalado na área de preservação permanente, a menos de 30 metros do rio. Tem que ter um processo. Na bacia do São Francisco são 450 cidades que não tem saneamento básico. Quem é que faz esse trabalho? O reservatório de Sobradinho é um imenso tanque de decantação. Ele é a estação de tratamento de esgoto da bacia. O primeiro problema é recuperar o rio, tratar, ordenar as outorgas, fazer com que as pessoas não peguem água no meio do dia com um poço, com um cano de duas polegadas e um motor de 3 hp com um pivô central jogando água na atmosfera. A outorga é uma autorização para a captação de água. Tudo que se refere a poços não requer outorgas, porque, pela legislação, o poço é o que se chama de captação insignificante, não causa um impacto no volume da disponibilidade hídrica da região onde se encontra. Agora, se você vai fazer um poço artesiano ou um poço de águas profundas, onde há bombeamento, você precisa de outorga. Se você vai retirar um pouco de água de um córrego, precisa de água. E por aí vai. Num reservatório é a mesma coisa. Acontece que, no Brasil, para cada outorga, para cada sujeito que está com um cano enfiado no rio tirando água, há 100 captações sem outorgas, ou seja, retirada ilegal. É por isso que a conta não fecha. Mas ninguém está falando em revitalização, que é algo complicado e caro, é um projeto de longo prazo. Não é “do” governo; tem que ser “de” governo.
CM - É impossível fazer a transposição antes disso?
HC – O rio não agüenta, não tem capacidade de suporte. Foi autorizada a transposição de 26 metros cúbicos/s porque é o que sobra. Os resto dos 360 já está outorgado. O Ministério da Integração Nacional fala que o projeto só vai usar 1% da capacidade do rio. Mas este é um jogo de números. É muito mais simples para as pessoas entenderem que é 1%. Só que 26 metros sobre 360 são 7%. Na verdade, o projeto é de 127 metros cúbicos/s, não de 26. Mas há uma diferença entre vazão máxima autorizada e vazão mínima autorizada. A vazão máxima é de 127 metros, a mínima é de 26, porque não dá para tirar mais. Se um dia os reservatórios sangrarem, aí pode chegar a até 127 metros por segundo. Mas aí está a primeira bobagem. Se o Sobradinho, por exemplo, sangrar, é porque o regime de chuva do semi-árido está extremamente intenso. Se for profundamente intenso, vai se repetir o que aconteceu este ano. Não só Sobradinho encheu. Castanhão encheu, Armando Ribeiro encheu, os grandes reservatórios encheram. Então você está transpondo o que pra onde, se os reservatórios estão cheios? O problema todo é de acesso à água.
CM - Este é o segundo problema?
HC – Exatamente. A capacidade de armazenamento dos reservatórios do nordeste brasileiro é de 37 bilhões de metros cúbicos de água. Teoricamente, a água já existe. O problema é que ela foi mal gerenciada, mal tratada. Veja a questão da evaporação no semi-árido. Em tese, um reservatório que tem, por exemplo, 2 bilhões e 400 milhões de metros cúbicos de água, em condições normais de temperatura e pressão, mesmo que não chova 5 anos, dado o número de outorgas concedidas, deveria durar dez anos. Ele seca em dois. Num reservatório, é preciso quatro litros de água para que nós possamos usar um; três litros irão evaporar. No Brasil, a evaporação no semi-árido é três vezes maior do que a precipitação. Por isso que em países como a África do Sul o açude tem uma tampa. Pra diminuir a evaporação. Se o sistema não for aperfeiçoado, você pode jogar água à vontade que ele evapora. O problema do nordeste não é fome, é água. Se tem água você produz alguma coisa. Mas muitas vezes você tem a comunidade na beira do rio recebendo água de carro pipa. Às vezes há uma linda área verde, produzindo melão, e uma cerca. Depois da cerca você anda quilômetros só vendo as casinhas de taipa e nada. Então o problema é o acesso a água. E isso pressupõe, primeiro, capital, investimento, e supõe direitos de cidadania e regularização fundiária. Fazer transposição não resolve o acesso a água porque o projeto vai levar a água basicamente para os reservatórios. E os grandes reservatórios ou atendem a áreas urbanas ou a produção irrigada. E a produção irrigada não é do seu Zezinho nem da dona Mariazinha.
CM - Mas se isso já é sabido, por que se está trabalhando com o mesmo projeto? Como é que se cai no “conto do vigário” de que o projeto vai levar água para quem não tem?
HC – Esse é o discurso. “Vamos levar água para quem tem sede”. Estão trabalhando com o mesmo projeto porque é rápido, tem efeito pirotécnico, dá discurso, dá palanque, tem placa. Como é que você inaugura um projeto de revegetação? Como é que você põe placa em 50 mil mudinhas? Essa é a razão. É uma obra simples de fazer e rápida. São três transposições diferentes em cascata. Primeiro, a do São Francisco; daqui de três a cinco anos, a transposição do Tocantins para o São Francisco; e daqui a dez anos a transposição do Tocantins para o Parnaíba, que é mais fácil ainda de fazer porque são 90km de distância de um para o outro. O problema é que o Tocantins é um rio amazônico, com um regime de chuvas de monção: seis meses com muita chuva e seis meses sem água. Por sorte, o período de cheia do Tocantins coincide com o período de seca do nordeste. Mas é um bioma diferente. Transpor água do São Francisco para o semi-árido não altera o bioma, é a caatinga. Mas transpor do Tocantins para o São Francisco são biomas diferentes. E aí você vai migrar a característica biológica de um rio que a natureza tomou o cuidado de separar para outro. É um processo de bioinvasão. Você vai ter elementos de um bioma sendo instalados em outro. E ninguém sabe o que vai acontecer.
CM - Qual o terceiro problema?
HC – A terceira questão é o modelo de desenvolvimento, um problema que o Brasil tangencia. Nesse modelo de desenvolvimento há dois componentes que têm que ser pensados. Primeiro, este é o modelo do agronegócio exportador. Este é um projeto feito para o agronegócio exportador. A transposição do Tocantins para o São Francisco leva água para o oeste da bacia, que é a nova fronteira de expansão do agronegócio na Bahia. E levar do Tocantins para o Parnaíba é levar exatamente para a nova fronteira de expansão do cerrado. É uma questão antiga e inquestionável: construir toda uma estrutura complicadíssima de gestão, com problemas seríssimos, para atender, de verdade, os problemas do agronegócio exportador. Há outra situação: o problema do cerrado. Onde estão hoje as principais nascentes do São Francisco? No cerrado. Você cria um processo de transposição para levar água para o agronegócio, que está expandindo para o semi-árido, que tira água de onde você tira para levar para o agronegócio. No momento em que você avança para o cerrado, vai desmatando e esgota as nascentes. Você vai matando os olhos d’água e tirando a capacidade de recarga da bacia do São Francisco. É um projeto do rabo abanando o cachorro. Então há uma série de questões de acesso à água, de cidadania, de regularização fundiária, de manejo dos recursos dos açudes, a questão das outorgas... são questões muito ligadas às necessidades da população do semi-árido não estão sendo contempladas neste projeto. Então é um megaprojeto, vai beneficiar as empreiteiras, vai levar água pra quem já tem e as questões mais importantes não estão na discussão. Portanto, eu sou contra este projeto de transposição no seu conteúdo técnico, social e pela sua irresponsabilidade de gestão de modelo de desenvolvimento. Esse projeto é um equívoco do começo ao fim.
CM - Mas pode existir um projeto de transposição que seja tecnicamente e socialmente correto do São Francisco?
HC – Claro, de qualquer bacia. Como? Revitaliza o São Francisco. São 30 anos trabalhando sério. Aí você voltou para os 2800 metros cúbicos/s e não mais para 1800. Vamos chegar na cota máxima do rio em 30 anos. Saneamento, reflorestamento, manejo de água, uso sustentável, combate ao desperdício, todo mundo usando cisterna. Em 30 anos o rio está recuperado. Aí dá para transpor. Além disso, é preciso tomar a decisão sobre o acesso a água. Eu posso levar para os reservatórios, mas é preciso criar um mecanismo que permita que o seu Zezinho e a dona Mariazinha, que não têm outorga, não têm terra, que não têm posse, nada, tenham acesso a água. Não é complicado de fazer, nem é caro.
CM - Mas depender regularização fundiária para fazer a transposição do rio é algo complicado... HC – Então por que o governo está querendo a transposição? Porque ele tangencia os problemas. É a famosa resposta sem pergunta. É um palanque muito interessante. As empreiteiras vão ficar felizes, etc. Porque fazer a revitalização, plantar árvores, fazer coleta de sementes, transportar a planta é algo que a população faz, e não a empreiteira. Se formos incompetentes, a revitalização do São Francisco gera um milhão de empregos para essa população. É um monte de gente envolvida. O cálculo correto é de uma pessoa por hectare revitalizado. Se estamos falando de dois milhões de hectares, o cálculo é de dois milhões de empregos. Se formos muito incapazes, um milhão. Então qual o problema em fazer a revitalização?
CM - Por que pessoas como Antônio Carlos Magalhães estão contra o projeto?
HC – Eu nunca imaginei estar do mesmo lado que Antônio Carlos Magalhães. Estou fazendo até terapia por causa disso... (risos). Só dispensei o terapeuta porque nós não estamos falando a mesma coisa. O discurso do Antônio Carlos Magalhães é: pode transpor desde que traga água do Tocantins pra Bahia. Porque o rio Sono é justamente na junção com o oeste baiano, que é exatamente na nova fronteira do agronegócio baiano. Quem está em Petrolina é contrário porque, lá, o que se produz é de exportação ou de consumo no sul e sudeste. Se você tem condições de expandir com a transposição – que vai garantir que o reservatório do Castanhão (CE) nunca vai ficar com menos de 3 milhões de metros cúbicos –, pra onde avança a fronteira agrícola de exportação? Para o Rio Grande do Norte, pro Ceará. E é isso que eles estão temendo. Vão perder mercado. É óbvio.
CM - Na sua opinião ainda é possível barrar este projeto?
HC – Sinceramente? Entendo que esse projeto vai sair. Embora exista este processo de uma vontade imperial, autoritária e autocrática, até messiânica de “eu vou salvar o nordeste”, não é essa a questão. A vontade imperial poderia até sofrer num enfrentamento. Acontece que este tema não mobiliza a sociedade. As pessoas ainda têm no imaginário a imagem da seca do nordeste de 1951 a 1954. Aquela imagem da terra esturricada, de milhares de animais mortos, das pessoas se arrastando pelo sertão. Esse imaginário – e que não é um livro, porque isso aconteceu mesmo e não há muito tempo –, quando proposto para o sul ou o sudeste – onde está a maioria da população, os jornais formadores de opiniões, o poder econômico, as grandes decisões –, quando alguém diz “eu tenho um projeto que é polêmico, mas que vai salvar o nordeste e vai levar água a quem tem sede e que, com isso, aquela imagem migrante completamente desgraçado não vai se repetir, as pessoas dizem “tá valendo”. O bem maior justifica. Os fins justificam os meios. O interesse do todo supera qualquer interesse individual. É um jogo de imaginário, um jogo muito perverso.
CM - O que há existe de acerto do ponto de vista político?
HC – A questão já está resolvida, o dinheiro já está empenhado. Não saiu a licitação ainda mas a empreiteira já está contratada. Essa parte burocrática já está resolvida. E vai sair porque é muito mais fácil fazer a transposição do que a revitalização. Segundo, porque é engenharia, dinheiro e empreiteira. E você vai levar a água pra quem já tem poder e interesse econômico, que é o agronegócio exportador. Então é ação entre amigos. E eles estão carecas de fazer isso. Não dá pra mudar porque o trem já está andando. E a experiência de movimento social demonstra que, embora você possa ter movimentos resistentes no país inteiro, a canoa só vira quando se consegue a adesão dos movimentos sociais do sul e do sudeste – essa história é verdadeira desde a proclamação da República. Então criou-se um negócio muito perverso por estar-se lidando com o imaginário: criou-se uma secção do país. Este lado de baixo, que tem energia e demanda pra fazer pressão, vai pagar a conta, mas não vai participar do processo não vai participar do processo, porque esses movimentos refluem na medida em que não têm contato com o semi-árido.
CM - Em quantos anos o processo termina? O governo Lula ainda corre o risco dele próprio pagar por este erro que está cometendo?
HC – Em um ano e meio você põe a obra funcionando. Fecha o primeiro ciclo da transposição, que é o eixo norte, em três anos. Em cinco anos você percebe se aquilo deu certo ou não. Toda grande decisão tem este preço.
CM - Pela sua linha de raciocínio, o Ministério da Integração Nacional sabe exatamente o que está fazendo e os interesses de quem está atendendo. O presidente Lula também?
HC – Me preocupa muito o argumento usado pelo Lula de que o projeto é para levar água para quem tem sede. A partir dessa abordagem, a mentira ficou evidente. “Vamos levar água para expandir a capacidade econômica do nordeste”. Ok, o argumento é verdadeiro. Se é justo, essa é outra discussão; mas é verdadeiro. Agora, levar água a quem tem sede, não. Eu tenho a clara impressão de que o presidente Lula é um homem – a história dele mostra isso – extremamente sensível e inteligente. Capaz e extremamente perceptível. Então não acredito que ele esteja inocente nessa história.
CM - Então não há como alterar este projeto definitivamente?
HC – Só tem um componente complicado nessa história. Pela primeira vez na história do Brasil desde a Guerra do Contestado e da Revolução Farroupilha existe uma crise federativa no país. Você tem os Estados doadores da bacia (MG, BA, PE, AL e SE) terminantemente contra e os Estados receptores (PB, RN e CE) a favor. No Nordeste, é a primeira vez que eu ouço falar que tem um Estado que está falando uma coisa que não é a mesma que o outro.
CM - E como fica isso num projeto que tem como ministro uma pessoa eleita pelo Ceará (Ciro Gomes)?
HC – São 26 metros cúbicos que serão transportados. Cinco metros cúbicos irão para o RN e PB; 21 irão para o CE, para o Castanhão, que é o maior açude do Brasil. Vai chover na horta de quem?
CM - Como resolver esta crise federativa?
HC – Levar a discussão para o Senado. Lá o agronegócio não domina. O Senado é dominado pelo segmento industrial ou pelo grande interesse econômico. E esse não está gostando dessa brincadeira, porque vai pagar a conta. Porque quando se reduzir 1% da energia elétrica para a transposição – e o rio São Francisco responde por 95% da energia do nordeste – a energia vai ter que ser composta. E não se pode trazer a energia de Itaipu para o nordeste; você vai ter que colocar termelétrica aqui. E as termelétricas entram na cláusula de energia emergencial, ou seja, na conta de todo mundo. Portanto, aquele gaúcho de Santana do Livramento vai pagar a conta também. Só que as indústrias não vão querer pagar essa conta. O problema é que este debate no Senado só vai acontecer depois que a obra começar, porque o legislativo não tem força para impedir nada porque não há especificidade na legislação brasileira que diga que isso tem que ser discutido no Congresso. Isso é obra do executivo. Mas, depois, o Senado pode interromper e embargar a obra por causa da crise federativa através de um decreto legislativo. Este é o único lugar em que o projeto de transposição está vulnerável, porque as bancadas do sul e do sudeste não querem. O cara pode ser do PMDB e ter um cargo no ministério, mas na hora em que o patrão dele, da Fiesp, disser “eu não vou pagar a conta dessa energia elétrica maluca”, ele assina embaixo. Agora isso só vai acontecer quando a crise for instalada. E isso ainda não existe.
CM - Aí pode ser tarde demais?
HC – Se isso acontecer, a obra já vai estar na metade. Vai ser no final do período legislativo de 2005, entre outubro e novembro. Isso não acontece antes porque a questão não é salvar a pátria. É salvar a pátria “de quem”. E quem fez essa bobagem? Ciro Gomes? Não. Lula. “Um irresponsável, que não tem capacidade de dirigir um país como esse”. É isso que vamos ouvir. Eu não acredito que ele seja inocente. Entretanto, existem outros movimentos de subterrâneo que estão chocando o ovo da serpente. Onde é que o presidente está embarcando no erro? No timing. Na visão do Lula, ele começa a obra em 2005 e vai começar a pingar água de 2006 pra 2007. O Lula está apoiando o projeto porque ele acha que essas coisas vão andar em curso, o que não é verdade



Como vocês podem ver, a transposição do Rio São francisco é uma balela! Protestem!!!