sábado, 27 de setembro de 2008

UMA RESPOSTA AO TEXTO: PRÓXIMA GUERRA


UMA RESPOSTA AO TEXTO: PRÓXIMA GUERRA
ou
POR QUE RORAIMA É TÃO ANTI-INDÍGENA?
ou aindaMITOLOGIAS GÖEBBELIANA



Por: Raoni Valle - Pesquisador bolsista
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA Núcleo de Pesquisas em Ciencias Humanas e Sociais - NPCHS



“Um olhar crítico interno ao Brasil explica muito mais a natureza dos problemas que temos hoje em Roraima e na Amazônia brasileira, do que ficarmos buscando ameaças externas, tio sam & cia, e lavarmos nossas mãos enquanto cidadãos brasileiros mil maravilhas. A propaganda da havaiana de que só nós podemos falar mal de nós mesmos, nem sequer se aplica aqui.”


Vivo e trabalho aqui na Amazônia faz mais de 3 anos como arqueólogo do Núcleo de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais (NPCHS) do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), no AM e em RR. Desenvolvo dois projetos com povos indígenas, em articulações com ong’s e com as universidades federais e estadual além dos próprios governos estadual e federal. Inclusive já estive na Raposa Serra do Sol e fui muito bem recebido pelas lideranças e população Makuxi e Wapixana, apesar das ações de milicianos de fazendeiros promovendo incêndios criminosos que cercaram nossa comitiva e nos deixaram presos numa ponte por horas em 2005 na saída da TI.


Acredito que esta pesquisadora, suposta autora ou redatora/relatora do texto “Próxima Guerra”, está completamente equivocada e está reproduzindo um discurso propositalmente construído pela grande mídia do sudeste, setores do Congresso, Senado e Palácio do Planalto apoiados e representando oligarquias agropecuárias de Roraima, do Mato Grosso, Rondônia, Pará, Goiás, SP, etc. Além de setores das próprias forças armadas interessadas na fragmentação das terras indígenas amazônicas, inclusive fora das áreas de fronteira. Um discurso perigoso, mal informado e mal informador que já faz tempo circula de email em email pela internet fazendo a cabeça da molecada.


A função estratégico-política desse discurso é essa mesma: formar uma opinião pública anti-indígena no Brasil como tem feito “excelentissimamente” em Roraima, o estado mais anti-indígena do Brasil, provavelmente. Assista o jornal da band com Boris Casoy, os comentários de Carlos Chagas e do âncora Nascimento no jornal do SBT, todos eles seguem a mesma linha de discurso, já conhecido por nós indigenistas, Joelmir Betting (acho que não é mais globo) e William Wack do jornal da globo não ficam atrás. Quando se encontra uma uniformidade geral nas posições noticiadas em telejornais de emissoras concorrentes pode coçar a barba.


Conheço razoavelmente Roraima, estive por duas vezes em pesquisas arqueológicas dentro de terras indígenas lá. E há muito tempo escuto o discurso paranóico norte-americanista espalhado por toda a Amazônia, pois inclusive eu fui partidário dele, antes de conhecer parcialmente a realidade complexa da Amazônia brasileira (e, como veremos, ele não é tão paranóico assim, pois existem elementos concretos para sua manifestação, mas têm que ser tratados com ponderação). E posso assegurar à minha consciência que o menor dos problemas da Amazônia brasileira é os Estados Unidos da América.
A falta de políticas públicas, sócio-ambientalmente, justas e sustentáveis, corretamente e democraticamente definidas, no âmbito das diretrizes dos governos é o pior problema da Amazônia hoje. As Terras Indígenas contínuas são as áreas melhor conservadas, mais do que unidades de conservação como Parques Nacionais (sonho dos Biólogos) e reservas extrativistas. As terras indígenas contínuas são os maiores exemplos da ineficácia das políticas públicas na floresta tropical brasileira, pois mostram que por sua autonomia na utilização dos recursos naturais, não pautadas, em sua maioria, pela lógica do mercado, se converteram em refúgios conservacionistas, e contrastam com estados como Mato Grosso, Pará e Rondônia que se converteram em anti-exemplos da conservação, possuem as oligarquias do agrobusiness mais influentes em Brasília, junto aos setores mais retrógrados e perigosos, do desenvolvimento de qualquer jeito, dentro do Congresso, Senado e Palácio do Planalto, inclusive em direta articulação com o agrobusiness roraimense. Atropelar uma das constituições mais libertárias do mundo democrático é só uma questão retórica para esse pessoal.
A opinião desta senhora mostra um desconhecimento total da legislação indigenista brasileira, da constituição de 88, da História político-ambiental de Roraima e da Amazônia brasileira. Junta um monte de pseudo-fatos, generalizações e pseudo-argumentações como a classificação da ONU sobre nação aplicada à questão indígena no Brasil. E mostra também que (infelizmente) a estratégia de massificação de uma opinião pública anti-indígena no Brasil está dando certo. Inclusive entre pessoas estudadas e “bem informadas” como a classe dos pesquisadores. Mas que também são “ideologisáveis” porque são gente! E, além disso, têm partições políticas, muitas vezes, não declaradas, mas, normalmente do lado de onde deriva o financiamento. Bem, há pesquisadores e Pesquisadores.


Por que Roraima é tão anti-indígena?


RR era território federal até 89 e foi garantido historicamente ao Brasil pela presença massiva de povos indígenas que escolheram negociar com os Portugueses e lutar ao lado desses contra seguidas tentativas de invasão estrangeira, desde o século XVII. A região foi assolada primeiramente pelas frentes holandesas da Companhia das Índias Ocidentais até meados do século XVIII e depois pelos ingleses, até final do século XIX. Um dos fatores para a desistência da Inglaterra foi a questão lingüística que, entre muitas etnias, é política e territorial ao mesmo tempo, pois a segunda língua politicamente e historicamente optada e falada pelos indígenas de RR foi e é o português. Embora falem tranquilamente em Ingarikó, Wapixana, Yanomami ou Makuxi com seus parentes indígenas da Venezuela e da Guiana, falantes em segunda língua de espanhol e inglês respectivamente (sim se fala inglês na Guiana, não porque os índios são vendidos aos norte-americanos, mas porque a colonização histórica foi britânica e a população é uma mistureba de indianos, jamaicanos e indígenas sul-americanos e não se iludam a CIA na América do Sul fala castelhano).
O Povo de Roraima até meados da década de 70 era composto, basicamente, por: Maciçamente indígenas de diversas etnias, efetivos militares e alguns grupos de garimpeiros ilegais em terras indígenas, bem como, algumas frentes extrativistas, como o caucho, a seringa, exploração de madeira, mais na parte sul de Roraima por onde entraram paraenses, amazonenses, maranhenses, cearenses, pernambucanos, etc. Os "Pobres" basicamente, que com o tempo alguns poucos foram se enriquecendo com a pecuária entre outras formas. Esta era Roraima que sempre conservou sua natureza territorial estratégica nas mãos dos indígenas que historicamente e politicamente se aliaram aos portugueses e depois ao Estado brasileiro.
Havia uma minoria de colonos Gaúchos, Goianos, Paranaenses, do centro-sul de maneira geral, que desde fins dos anos 70 foram sendo implantados por subsídios dos governos militares, para aos poucos irem “desindiando” o território e “civilizando", "desenvolvendo" aquela porção. Comungavam uma visão racista que só os colonos de descendência européia recente, alemães ou italianos é que tinham capacidade de criar uma nação, e assim vieram a compor uma elite fundiária desenvolvimentista, dentro da ideologia integracionista e desenvolvimentista desastrosa dos anos 70 militarizados. O problema do Quartieiro em Pacaraima e de outros arrozeiros latifundiários "Gaúchos" começa por essa época, e o acirramento dos problemas das etnias indígenas também, que contabilizam hoje 3 décadas de guerra de baixa intensidade e de conflitos armados com milícias implantadas nas fazendas atuando fora delas, os jagunços de Roraima, de maneira ininterrupta.
Transformar Roraima de território federal em estado federativo, implicava em reconhecer o status das terras indígenas como tais. A constituição de 88 trouxe esse aparato legislativo e jurídico, foi então reconhecido de fato o direito anterior dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais que eram praticamente as mesmas desde o início da colonização européia das Américas até os anos 80 do século XX, e isso foi matizado na Constituição. A grande maioria das ocupações não-indígenas no estado de Roraima é dos anos 70 em diante. Foram feitas conscientemente e na base da violência e opressão em cima de territórios indígenas conhecidos e reconhecidos oficialmente nos últimos 30 anos, ou seja, são na maioria constituídas numa base jurídica de má fé, e, portanto, a rigor ilegais.
De certa forma, o que os portugueses fizeram nos séculos XVI, XVII e XVIII no Brasil indígena, os colonos arrozeiros e pecuaristas centro-sulestinos, os militares e uma massa empobrecida de imigrantes nordestinos e nortistas (esses desde bem antes e com menos poder de fogo) veio fazendo desde os anos 70 até hoje em Roraima, já com uma base legal de reconhecimento dos direitos dos povos indígenas. Portanto, foi até pior do que a colonização histórica. Foi mais perversa e vergonhosa.
A falta de uma identidade com a Terra é a única coisa na argumentação da referida pesquisadora que parece proceder do ponto de vista de demonstrar que o estado de Roraima possui uma população não-indígena e "não Roraimense" implantada recentemente, uma colonização recente que se encaminha para sobreocupar terras indígenas pretéritas, historicamente e juridicamente reconhecidas. Um conflito iminente já era previsível nos anos 70 quando essa política desastrosa de colonização e etnocídio dos governos militares começou a ser implantada. Gerou um monstro ideológico-administrativo, pós-democratização, anti-indígena rizi-bovino que temos hoje no governo de Roraima e em sua elite política.
No caminho entre os militares setentistas e Roraima estavam os Waimiri-Atroari. Os Waimiri-Atroari eram duas etnias diferentes que foram quase exterminadas pelos governos militares e frentes extrativistas nessa época. Sobreviveram cerca de 130 índios das duas etnias que foram ajuntados para garantir uma mínima reprodutibilidade cultural e física. A abertura em suas terras da BR 174 nos anos 70, foi a pior coisa que lhes aconteceu, e depois nos anos 80 foram coroados com a hidro-elétrica de Balbina, um fiasco energético, um Mamute Branco, que destroçou a bacia do rio Uatumã, principal rio do território tradicional dos Waimiri-Atroari. Não é gratuito, portanto, terem escolhido a partir de 88, é claro, manterem distância dos Brancos, arbitrariedades militares e das políticas de integração e geração de energia, além da história nos relatar que muitos índios pereceram por balas do fuzil Belga FAL.
NÃO ENTRAR NA TERRA INDIGENA WAIMIRI-ATROARI DEPOIS DAS 18:00 HORAS ATÉ AS 6 DA MANHÃ, PELA BR 174 É UMA REGRA GERAL APLICADA A TODOS. É UM ACORDO FORMAL COM O GOVERNO FEDERAL BRASILEIRO RESPEITADO POR AMBAS AS PARTES E NÃO UMA ARBITRARIEDADE INDÍGENA PRÓ-YANKEES. È O MÍNIMO QUE LHES SOBROU EM RESPEITO À PAZ DE ESPÍRITO MASSACRADA.


Um olhar crítico interno ao Brasil explica muito mais a natureza dos problemas que temos hoje em Roraima e na Amazônia brasileira, do que ficarmos buscando ameaças externas, tio sam e cia, e lavarmos nossas mãos enquanto cidadãos brasileiros achando que somos as mil maravilhas. A propaganda da havaiana de que só nós podemos falar mal de nós mesmos, nem sequer se aplica aqui.
O PROBLEMA DA AMAZÔNIA É NOSSO, NÃO PORQUE A AMAZÔNIA O É, POIS ISSO É UM FATO INDISCUTÍVEL. O PROBLEMA DA AMAZÔNIA É NOSSO, PORQUE FOMOS NÓS QUE O CRIAMOS, E, PORTANTO, PESA SOBRE NÓS A RESPONSABILIDADE DE RESOLVÊ-LO COM SOBRIEDADE E AVALIANDO SUAS CAUSAS DE MANEIRA CORRETA.
Existem ameaças externas sim à Amazônia: a Colômbia é quintal da CIA que, há quem diga, está afirmativamente trabalhando para um golpe de Estado na Bolívia; a bio-pirataria é outra bronca real, norte-americana, japonesa, francesa, alemã, etc. embora hoje existam mecanismos de controle que nos anos 80 e 90 não existiam. Missionários protestantes norte-americanos, cripto-missionários fantasiados de lingüístas antropólogos, de grupos como o SIL e Jomon estão soltos pra cima e pra baixo atuando em etnias pouco contatadas dentro do estado do Amazonas. Esses caras são reais, não são “ongueros” da CPI das ONGs, são Igrejas Evangélicas norte-americanas podres de rica que descem de hidro-avião nas TI’s, com telefonia de satélite, e nem a Funasa, nem a Funai conseguem ter as entradas que esses caras têm, na precariedade da assistência estatal, esses caras fazem a festa desautorizada pela União, mas sob a bandeira da liberdade de crenças religiosas. Mas é interessante como essas estórias não são contadas e viram lendas de cidades perdidas na floresta. Quem anda dentro dessas matas, como nós, é que sabe o que é que ta pegando de verdade, não precisamos inventar mitologias paranóicas convenientes.
Mais ameaças externas: Venezuela pode virar um pepino sul-americano gigante em cima da gente a qualquer momento (embora Chavez tenha plena consciência da importância do Mercosul e de seus vizinhos como um Buffer Zone para suas despirocações, e se os democratas assumem lá em cima, podemos ter uma descompressão do cenário). Bem, antes CHÁVEZ do que URIBE e a CIA.
Mas também existem aliados externos da Amazônia. Existe uma grande discussão global legítima sobre o meio ambiente, sobre mudanças climáticas, sobre equalização das diferenças sociais e econômicas, sobre os ecossistemas prioritários para conservação no mundo e a Amazônia e os povos amazônicos estão integrados nela. PORTANTO, NÃO ADIANTA O BRASIL DISCUTIR A AMAZÔNIA SOZINHO. DE IMEDIATO EXISTEM OUTROS 8 PAÍSES QUE DISCUTEM DIRETAMENTE CONOSCO O FUTURO DA AMAZÔNIA. A AMAZÔNIA É UMA QUESTÃO SUL-AMERICANA ANTES DE SER BRASILEIRA PORQUE OS ECOSSISTEMAS ESTÃO INTEGRADOS E NÃO SE SEPARAM POR FRONTEIRAS GEOPOLÍTICAS DAS NAÇÕES NÃO-INDÍGENAS.
Enfim, nós “indigenistas” que trabalhamos com a questão indígena no Brasil nos últimos anos, temos visto essa argumentação ideológica crescer em força e se popularizar. Inclusive em Roraima que, como dito acima, figura entre os estados mais anti-indígenas do Brasil, não sendo por acaso que 54% de suas terras sejam indígenas e gerem, aparentemente, o propagado engodo anti-desenvolvimentista. A cifra divulgada de 70% de terras indígenas em RR é mais uma manipulação Göebbeliana ninja e sacana. UMA MENTIRA REPETIDA MIL VEZES VIRA UMA VERDADE.


Não sei se esse papo explica porque RR é tão anti-indígena, mas faz um sentido arretado na minha cabeça!


Para finalizar só mais alguns dados:


1 - A Constituição federal brasileira pauta o Brasil e não a ONU. Na Constituição brasileira não se faz menção a nações indígenas. Nela expressões como Terras Indígenas; Povos Indígenas; Etnias Indígenas; Grupos Indígenas; ou Populações Indígenas são termos mais próprios, com responsabilidade jurídica e rigor antropológico.


2 - As Terras Indígenas pela Constituição federal são propriedades do Estado Brasileiro que concede o direito de usufruto dos recursos naturais, excetuando grosso modo, mineralógicos, hidro-energéticos e arqueológicos para os quais é reservada a prerrogativa do Estado no seu uso. A fiscalização, controle, permissão de entrada e saída, portanto, a administração das terras indígenas dentro do espaço nacional federativo, em interface com o território nacional e em fronteiras internacionais é responsabilidade da união e de suas partes constitutivas, como Forças Armadas, Polícia Federal, etc. Estes têm livre acesso às Terras Indígenas desde que pautados em demandas oficiais do Estado Brasileiro, legalmente sancionadas e corretamente acordadas com as demandas das populações indígenas. A rigor, as Terras Indígenas são espaços diretamente controlados pelo Estado Brasileiro, que tem pleno poder de trânsito nelas por constituir sua propriedade inalienável, incluindo aí a ação dos militares no Estado Democrático de Direito. Portanto, são áreas de "segurança nacional" das mais protegidas, e os indígenas funcionam aí como os principais "funcionários" do poder público, no controle e na preservação desses espaços. O que vêm fazendo historicamente.
Portanto, a discussão sobre o temor da soberania e independência das terras indígenas é infundada e alarmista, além disso, é intencionalmente manipulada e manipuladora. Pior que isso é a discussão de que as decisões indígenas são manipuladas por ongs estrangeiras em prol das prerrogativas de Estado Norte-americanas, sempre. Coitados dos abastados Noruegueses (cujos únicos problemas são os suicídios de seus jovens e as únicas ambições são dar sentido às suas vidas) que, dentre os gringos, são dos que mais financiam projetos indígenas.


3 - Afirmar pelo retrocesso ou redimensionamento das terras indígenas como hoje estão homologadas, ou em processo de demarcação e homologação, significa expressamente torná-las disponíveis à apropriação privada, entre outras modalidades. Ora, se a propriedade é privada ela passa a ser controlada por um cidadão com plenos poderes de negociar aquela posse com qualquer instância, inclusive com grandes conglomerados agro-exportadores transnacionais, o que já vem acontecendo em grande parte do Mato Grosso, Pará, Goiás, Ceará e em outros estados brasileiros. Se não pelo agro-negócio pela indústria internacional do turismo, é o caso dos espanhóis no litoral do Ceará, que ouviram do governo estadual que na Terra Indígena Demarcada Tremembé de Almofala não havia índios, só uns pescadores safados manipulados por uma ong para se fingirem de índios. Gerou uma das frases clássicas do anti-indigenismo: "E no Ceará tem índio?" qualquer semelhança com Roraima não é mera coincidência.
A lógica foi invertida, da propriedade privada para a propriedade do Estado. É essa Inversão lógica que tenta se afirmar pelo discurso da pesquisadora ou de suas fontes, que são meras reprodutoras (in?)conscientes de uma manipulação Göebbeliana da era informacional: a de que são as terras indígenas e não os latifúndios do agronegócio uma ameaça à soberania nacional.
Há também uma oposição que se camufla, se traveste: de um lado os Índios da Raposa que são acusados de serem influenciados por ongs estrangeiras pró-estados-unidenses, como a TNC ou TNT, sei lá, atrás do Nióbio (Ni 41) dentro das terras da União. A Raposa é do Estado Brasileiro, as terras são inalienáveis, ninguém pode mexer no nióbio salvo a União, e o usufruto dos índios de maneira nenhuma impede fiscalização do Estado Brasileiro pela PF ou pelas Forças Armadas, a mesma se não ocorre adequadamente não é por conta dos Índios, é porque o dono do quintal não limpa seu terreiro como deveria. Quem afirma o contrário desconhece profundamente a realidade das Terras Indígenas e a Constituição Federal Brasileira; de outro lado estão os Arrozeiros, que são sim invasores históricos, e legitimados pelo governo do estado de Roraima, mas são veiculados na mídia como produtores responsáveis pelo desenvolvimento nacional, pais de família, produtores de alimentos para as populações de Manaus e Boa Vista. A questão não é a função desempenhada por esses setores, mas a que custo, e com qual legitimidade ocuparam aquelas terras, e pior: através de quais processos. Pois são sim perpetradores de porte ilegal de armas, formação de quadrilha, pistolagem, homicídio doloso premeditado, ameaça à vida, roubo de terras federais, incitação ao ódio e ao crime racial e etnocídio. Tudo isso para se plantar arroz ? Isso não é só em Roraima, essa receita diabólica é lugar comum em todas as partes do Brasil onde se está tendo conflito por Terras Indígenas. Quem trabalha com índio está acostumado a lidar com isso sem o filtro dos telejornais.
È fato histórico repetido na América Latina como um todo desde o século XVI o que se tem feito de espoliação das terras indígenas e dos direitos anteriores dessas gentes. O que se tem passado em Roraima nos últimos 30 anos é explicitamente uma tentativa de limpeza étnica balcânica, limpar os territórios dessas gentes, como erva daninha e produzir para o agronegócio, rachar o solo, detoná-lo para produzir arroz, depois soja depois gado, depois o quê??? Francamente, existem muitas outras alternativas de geração de recursos alimentares que não estão pautadas necessariamente em violação dos direitos humanos e na usurpação das terras da União Federativa Brasileira, para não dizer em assassinato em massa. Deslocar esses povos de seus territórios tradicionais e forçá-los a serem sub-empregados de latifundiários centro-sulestinos, seus piores inimigos, é decretar o fim dessa gente, é caminhar para o etnocídio de Estado em larga escala em Roraima. PREFIRO PASSAR SEM COMER ARROZ!
Na verdade, se fôssemos uma população politicamente amadurecida, em termos de valores éticos, já teríamos feito boicote ao consumo de arroz “alma sebosa” de Roraima.
Minha gente (sem paráfrase Collorida): O CAPITAL DO AGROBUSINESS NÃO TEM FRONTEIRA, OS POVOS E AS TERRAS INDÍGENAS TÊM E SÃO BRASILEIRAS!!!
No caminho objetivado pelo Inpa para a consolidação de um Grupo de Assuntos Estratégicos ou Núcleo de Altos Estudos seria interessante se ter clareza para afirmar que ciência e política estão juntas na discussão de assuntos estratégicos e na contribuição efetiva nos debates relevantes que estão em curso como a Raposa Serra do Sol e a situação dos Povos Indígenas Amazônicos e suas Terras como um todo.
Achar que ciência está em isolamento axiológico é ingenuidade para não dizer que é intencionalmente pensado para escamotear posições políticas não declaráveis implícitas nos objetivos e justificativas de pesquisa. A questão indígena não é política, é antes de tudo ética, e se queremos continuar fazendo pesquisa na Amazônia de maneira ética, temos de nos posicionar no debate sobre as terras indígenas e seus povos de maneira correta e sem ambigüidade, até, pois, muitos dos colegas da casa trabalham em terras indígenas e têm algum tipo de conhecimento de causa. SER INDIGENISTA NÃO É SER POLÍTICO, É SER ÉTICO!!! Portanto, é possível ser científico na temática indígena desde que se seja ético.
Leiam a Constituição, leiam o voto do Ministro Ayres de Britto, conheçam a realidade das lutas indígenas nesse país e parem de se informar pelo Carlos Chagas ou pelo Boris Casoy. Analistas de conjuntura nunca foram fontes confiáveis historicamente.
E principalmente: biólogos, cientistas ambientais e da terra, que andam pela Amazônia enriqueçam epistemologicamente suas almas com a antropologia, a história, a sociologia, a arqueologia, a geografia e a economia antes de falarem em meio ambiente, povos amazônicos, em conspirações internacionais e em babilônias correlatas.
Raoni Valle - Pesquisador bolsista

Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA Núcleo de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais - NPCHS
Pesquisador colaborador -
Projeto Amazônia Central - PAC - MAE/USP


quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Bolivia luta para manter a democracia


Por Otto Mendes Filho


Eu só queria ver, se toda essa confusão na Bolivia tivesse sido iniciada por indígenas e outros trabalhadores. Pronto: a imprensa brasileira e internacional os estariam chamando de retrógrados, anti-democráticos e primitivos, mas, como tudo começou com a ultra-direita, comandada pelo banqueiro Branko Marinkovic (cujo os pais foram expulsos da Bosnia por trabalharem para o governo de Mussolini) e que é apoiado pela revista Veja, pela Globo, Bandeirantes, Folha de São Paulo e pelo Estadão, que se dizem defensores da democracia, mas, defendem abertamente o golpe e o assassinato de caponeses na Bolívia, basta ler as últimas edições desses dois lixos para comprovar esse fato. A teoria de que o golpe foi consequencia do imposto sobre o gás, para pagar aposentadorias e falta de autonomia é uma grande mentira. Evo Morales é uma pedra no sapato dos Estados Unidos e da elite européia boliviana, que não aceitam um indígena como presidente e acham que tal fato é uma ameaça a posição dos EUA na América do Sul, pois, o imposto criado democraticamente pelo governo iria atingir somente 6% da receita das provincias, mas, iria ajudar milhares de pessoas, o que irritou os colonialistas bolivianos. Dias antes de se iniciarem as tentativas de golpe, o nazi-facista Branko Marinkovic esteve nos EUA, para planejarem o golpe. No dia anterior ao fato, o embaixador norte-americano Philip Goldberg (foto acima), esteve com os governadores golpistas para esclarecer os últimos detalhes das ações. O presidente Evo Morales precisa esmagar esses governadores, empresários, o banqueiro Branko Marinkovic e os norte-americanos que se encontram no país, senão seu governo, democraticamnte, eleito nunca terá paz.

Museu mostra como europeus se aproveitaram da escravidão


17/09/2008




Inaugurado em Liverpool no ano passado, Museu Internacional da Escravidão expõe os fundamentos econômicos que ajudam a entender a história. Acervo mostra como tráfico de escravos foi central para a Revolução Industrial

Por Maurício Hashizume

Liverpool - Há uma expressão em Inglês que resume a "naturalidade" da dinâmica mercantil: business as usual, ou seja, um negócio comum, como outro qualquer. Pois é assim que o Museu Internacional da Escravidão retrata o comércio transatlântico de escravos, que vigorou dos séculos XVI ao XIX.
Inaugurado na famosa cidade dos Beatles em 23 de agosto de 2007 - por ocasião dos 200 anos do Ato pela Abolição do Comércio de Escravos -, o museu inglês expõe os fundamentos econômicos da escravidão. Cumpre, dessa maneira, os três principais objetivos a que se propõe: mostrar como milhões de africanos foram escravizados, evidenciar a participação crucial de Liverpool (e da Inglaterra como um todo) no processo, e enfatizar as conseqüências dessa exploração para as diferentes partes envolvidas.
Os conteúdos dos painéis que fazem parte do museu, localizado na revitalizada Albert Dock, servem de complemento ao (pouco) que se aprende sobre a escravidão nos bancos escolares do Brasil, uma ex-colônia de Portugal - nação que aliás sucumbiu justamente diante da ascensão inglesa.
São três seções montadas para os visitantes. A primeira busca mostrar um pouco da vida e da cultura da África Ocidental: com a reconstituição de parte de uma vila do povo Igbo e a exibição do artesanato, das manifestações culturais e dos conhecimentos tradicionais desta região da África. Nesse segmento inicial, os organizadores do museu priorizam a valorização da diversidade cultural do continente africano, definido como "berço das civilizações", do qual "todos nós somos descendentes".
Os alicerces econômicos do comércio transatlântico de escravos aparecem na segunda parte do museu, chamada de "passagem do meio". Depois de recuperar (e condenar) o pensamento racista adotado como justificativa para as intervenções coloniais ("superiores" em comparação com os nativos "bárbaros") por parte dos "conquistadores" europeus (primeiro portugueses e espanhóis, depois principalmente ingleses, franceses e holandeses), as placas e objetos históricos do acervo compõem uma desconstrução reveladora das transações triangulares entre Europa, África e América.
Alma do negócio
Nunca foi segredo que o comércio transatlântico de escravos atendia uma demanda por mão-de-obra, pois as nações européias estavam interessadas em aumentar a produção de gêneros como açúcar, café, algodão e tabaco em território colonial para abastecer o crescente consumo europeu. Não havia braços suficientes nas próprias colônias, já que muitos nativos foram dizimados, fugiram ou ficaram doentes com as invasões dos "conquistadores".
A forma como essas operações de tráfico negreiro eram organizadas, no entanto, nunca mereceu explicação mais detida nos estudos da história brasileira. Os visitantes saem do museu com a noção concreta de que a comercialização de escravos se assemelhava a um investimento de alto risco, mas com possibilidades de retornos exponenciais - típico da ciranda financeira.
Era custosa e complexa a preparação de uma embarcação para esse fim. Mercadores convocavam parceiros (outros mercadores, banqueiros, políticos, fazendeiros e até pequenos "investidores") para formar um pool, uma espécie de consórcio para a repartição dos custos e riscos e, por conseguinte, para a viabilização do negócio. Registros dão conta de que a estruturação de apenas uma viagem em 1790 custou, por exemplo, £ 10 mil (libras esterlinas). Corrigido para valores atuais, esse "investimento" seria equivalente a £ 550 mil, ou melhor, cerca de R$ 1,8 milhão.
A participação de diversos interessados também facilitava outra providência essencial para o tráfico: a arrecadação de mercadorias necessárias para a "troca" por escravos africanos. Com mais pessoas envolvidas, ficava mais simples reunir produtos que interessavam aos "dominadores" da África que capturavam à força e vendiam escravos. Encontrar gente disposta a fazer parte desse tipo de empreitada não era tarefa muito complicada: segundo relato de um observador que vivia em Liverpool na época, praticamente todo homem da cidade era um mercador.
Além disso, existia uma estreita ligação entre o poder político e a exploração do comércio de escravos. A própria Royal African Company inglesa, fundada em 1672 e ativa até 1750, deteve o monopólio do comércio de ouro e de escravos com os africanos até 1698. O principal comandante e maior acionista da empresa era James, irmão do rei e Duque de York.
Capital do tráfico negreiro
Mercadores de escravos como Thomas Golightly, que foi prefeito de Liverpool nos idos de 1720, reiteravam a conexão direta entre o pólo econômicos e a classe política. As docas da cidade foram inauguradas em 1715 e a Casa da Alfândega (Custom House) foi construída em 1722. Algumas das construções daquela época, como a estação da Great Western Railway encravada na região portuária, continuam até hoje de pé.
No final do século XVIII, Liverpool se tranformara na capital do comércio transatlântico de escravos. O escritor William Mathews, testemunha dos acontecimentos, assinalou uma adesão em bloco do povo da cidade ao tráfico escravagista, que satisfazia o "desejo indiscriminado de participar de negociações comerciais e ganhar dinheiro em todas as oportunidades".
As estimativas dão conta de que pelo menos 1,5 milhão de africanos tenham sido transportados da África para a América por embarcações que partiram de Liverpool. Esse contingente consiste em mais de 10% do total de escravos vendidos de que se tem conhecimento.
Um conjunto de fatores explica a dianteira assumida por Liverpool nesse quesito em comparação com outras cidades inglesas como Londres e Bristol. Cidade portuária, Liverpool é também um ponto de convergência de rios e canais. Roupas, armas de fogo, munições e ferro chegavam com preços relativamente baixos no burburinho do comércio local. Em suma, os mercadores de Liverpool baixaram custos, eram mais rápidos e mais flexíveis. Com o tempo, estreitaram relações com os vendedores de escravos do Oeste da África. Aproveitaram-se dessa proximidade para providenciar todos os produtos almejados por seus parceiros comerciais.
Base da Revolução Industrial
Ainda na seção intermediária da "passagem do meio", o Museu Internacional da Escravidão também dá nome aos bois quando trata dos beneficiados do tráfico negreiro. Algumas personalidades como Richard Watt, que fez fortuna explorando escravos na Jamaica e depois comprou uma mansão em Liverpool, são citadas nominalmente no acervo. Famílias milionárias tradicionais como os Gladstone também aparecem diretamente vinculadas à escravidão, assim como bancos importantes - Thomas Leyland, Heywoods (absorvido posteriormente pelo Barclays) e até o Banco da Inglaterra. O tráfico impulsionou ainda investimentos em outros setores, como na mineração, como fica evidente no caso do empresário Richard Pennant, que redirecionou os lucros advindos do comércio escravagista.
Os dados coletados não deixam dúvidas, portanto, que a escravidão esteve na base da Revolução Industrial. Com os benefícios econômicos decorrentes da exploração do modelo colonial, os ingleses puderam injetar recursos em setores estratégicos como a siderurgia, a extração de carvão mineral e a formação dos bancos. Concomitantemente, a mão-de-obra escrava propiciou o aumento de produção de gêneros como açúcar e algodão, atendendo à demanda do mercado interno europeu.
Essa conjunção de fatores contribuiu para o desenvolvimento da indústria têxtil e das bases da infra-estrutura produtiva (estradas, canais, etc.) na Inglaterra, nação soberana absoluta no comércio de escravos durante o século XVIII. Era o jogo de "ganha-ganha", em que os ingleses lucravam com a venda de escravos, com o comércio dos produtos por eles cultivados e ainda investiam em indústrias próprias e na estrutura necessária para garantir ainda mais acúmulo de riqueza no futuro.
O tráfico negreiro se estendeu por quatro séculos. Pelo menos 12 milhões de pessoas foram escravizadas. Dois terços dessa estimativa eram formados por homens com idade de 15 a 25 anos. Ou seja, as nações européias capturaram a mão-de-obra dos povos africanos em seu favor, fator que evidentemente se tornou um obstáculo para o desenvolvimento do continente.
De quebra, armas de fogo e munições estavam entre os principais produtos que os europeus transportaram para os comerciantes da África em troca de escravos. A posse de armas de fogo era fundamental para a manutenção das atividades dos "mercadores" de escravos. Essa troca certamente ajudou a perpetuar os conflitos internos na África e está no pano de fundo da instabilidade política que marca o continente. Sem força de trabalho e pressionados pela quantidade de equipamentos bélicos, os povos africanos viram as possibilidades de desenvolvimento tolhidas. Uma declaração pinçada do acervo do museu faz uma pertinente constatação dupla: a África ajudou a desenvolver a Europa e a Europa ajudou a não desenvolver a África. Esse tipo de relação extremamente desigual pode ser estendido, com os devidos ajustes, às colônias da América e da Ásia.
Rotina dos escravos
Elementos de sobra no museu relembram as condições enfrentadas pelos escravos. Desde a compilação de dados sobre três viagens realizadas pelos barcos Brooks, Bud e Rose - com a catalogação das respectivas durações dos trechos, da quantidade de alimentos consumidos e de quantos chegaram vivos às ilhas do Caribe - até a exibição de material audioviovisual replicando a viagem nos navios negreiros em telões. Em média, as viagens da África para o continente americano duravam cinco semanas.As pessoas eram obrigadas a ficar em espaços apertados, sem ar, nos "porões" das embarcações. Água para beber e comida eram limitadas.
Os homens eram separados das mulheres e das crianças. Alguns eram forçados a dançar para entreter a tripulação. Era freqüente o abuso sexual de mulheres. Traumas abatiam muitos dos escravizados. Alguns ficavam sem comer e revoltas explodiam em pelo menos uma de cada dez viagens da África para a América. Todas eram reprimidas com ferocidade. De acordo com um levantamento do British Privy Council de 1789, uma média de 12,5% dos escravos morria antes de chegar ao destino.
A troca de "donos" era comum. Escravos eram forçados a caminhar por longos trechos da costa africana até os locais de embarque para atravessar o Oceano Atlântico. Esqueletos empalados expostos nos fortes demonstravam o que aconteceria se alguém tentasse fugir. Mesmo com todas essas dificuldades, líderes resistiram. Como Tomba, líder do povo Baga no Guiné (1720), e Agaja Trudo, rei de Dahomey (1724-1726).
Uma das passagens mais trágicas do tráfico se deu com o navio Zong. A embarcação deixou a costa africana no dia 5 de março de 1781 com 440 escravos a bordo. Durante a viagem, 132 foram jogados ao mar e apenas 208 chegaram à ilha que hoje é a Jamaica. O grupo de "investidores" entrou na Corte Inglesa para cobrar £ 30 (libras esterlinas) por cada corpo jogado ao mar. A ação não resultou em ressarcimentos e o capitão Colingwood (acusado de assassinato) não foi condenado, mas a repercussão do caso foi péssima para os defensores do comércio de escravos.
Uma réplica de uma fazenda no sistema plantation foi montada no Museu Internacional da Escravidão. No modelo "Casa Grande e Senzala", os escravos enfrentavam vários tipos de violência. De todos os lados, vinham pressões para que os africanos se desvinculassem de suas identidades. Eram marcados com ferro quente e tratados como animais. Mesmo com tudo isso, não faltaram casos de resistência. O caso de Zumbi dos Palmares, liderança popular que desafiou escravocratas no Nordeste brasileiro, está registrado em Liverpool.
Mudança de postura
A partir do século XIX e na esteira da Revolução Industrial, a posição da Inglaterra mudou. Em 1807, o tráfico negreiro se tornou ilegal no país. Os ingleses passaram a pressionar pelo fim desse comércio, em resposta ao fortalecimento das mobilizações abolicionistas e especialmente de olho na conversão de escravos em potenciais consumidores de seus produtos industrializados. Liverpool tinha passado de capital do comércio transatlântico de escravos para capital do algodão.
Essa é a participação inglesa no tocante à história da escravidão mais frisada aos brasileiros. Em 1810, Portugal - que tinha transferido a Coroa para o Brasil em 1808 - e Inglaterra assinam o Tratado de Aliança e Amizade, no qual os ingleses já exigem restrições ao tráfico negreiro. Também por pressão da Inglaterra, Portugal concorda, durante o Congresso de Viena de 1815, em vetar o tráfico acima da Linha do Equador. Depois de desempenhar papel importante na independência do Brasil, os ingleses continuaram pressionando pela abolição. O Brasil acabou assinando um tratado com mais restrições nesse sentido em 1826 e, em 1831, promulgou lei que proíbe o comércio de escravos com outras nações da África.
Em 1833, o Parlamento aprovou a abolição da escravatura também na parte das Antilhas pertencente à Inglaterra, no Canadá e no Cabo da Boa Esperança (sul da África do Sul). Em 1845, o Parlamento inglês aprovou o Bill Aberdeen, que determinou o aprisionamento de embarcações utilizadas no tráfico de escravos. Entre 1808 e 1869, a Esquadra do Oeste africano da Real Marinha Inglesa desbaratou cerca de 1,6 mil navios negreiros e libertou cerca de 150 mil africanos. Mesmo assim, mais de um milhão de pessoas ainda foram escravizadas e transportadas durante o século XIX.
Entre os legados da escravidão (que estão na terceira e última seção do museu que já recebeu a visita de 302 mil pessoas), foram destacados nomes famosos de ruas de Liverpool que têm alguma relação com o comércio de escravos. A herança musical e a presença de uma comunidade negra em Liverpool ganharam espaço reservado nessa parte. Personalidades negras foram resgatadas e a influência do tráfico negreiro para o racismo existente até hoje está exposta com destaque.
Um memorial, construído pelo Babalaô Yoruba Orlale Kan Babaloa , presta homenagem aos ancestrais negros. E uma escultura feita a partir de sucata e objetos reciclados por jovens de Porto Príncipe, no Haiti, simboliza o déficit de liberdade, que não acabou com o fim da escravidão antiga. "As pessoas hoje não têm mais correntes em seus braços e suas pernas, mas ainda têm correntes em suas mentes. Quando não se tem comida ou moradia, não se vive livremente", disse um dos autores da peça.
Logo na entrada do Museu Internacional da Escravidão, há uma declaração do ex-escravo William Prescott, captada em 1937. "Eles vão lembrar que nós éramos vendidos, mas não que éramos fortes. Eles vão lembrar que éramos comprados, mas não que éramos corajosos". Em seguida, os organizadores do museu prometem: "Nós lembraremos. Essa história foi negligenciada por muita gente durante muito tempo".

Modelo de desenvolvimento do Pará está baseado na "ilegalidade"

Desmatamento na região de Marabá, sul do Pará



11/09/2008




Para Leandro Aranha, chefe de fiscalização do Ibama no Pará, aumento do desmatamento deriva do modelo de produção adotado no Estado, que tem a ilegalidade como um de seus princípios








Por Verena Glass, do Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis




No início de setembro, o Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) adiantou os números preliminares do desmatamento da Amazônia, e o que se constatou é um novo aumento nos índices, se comparados com os números do período anterior: entre agosto de 2007 e julho de 2008 foram desmatados 8.147 km2, quase o dobro dos 4.820 km2 destruídos entre agosto de 2006 e julho de 2007. O campeão do desmatamento foi o Estado do Pará, com 5.425 quilômetros quadrados de florestas derrubadas. Isso tudo, apesar dos esforços do Ibama e da Polícia Federal, que no início do ano ocuparam vastos espaços no noticiário nacional por conta da operação Arco do Fogo, que teve início no município de Tailândia (218 km da capital paraense, Belém) e que buscou inibir o processo de devastação nos 36 municípios campeões da desflorestação em 2007.




Para Leandro Aranha, chefe de fiscalização do Ibama no Estado, o desmatamento é uma decorrência do modelo de produção adotado no Pará, que tem a ilegalidade como um de seus princípios. O caso de Tailândia, onde a Operação Arco do Fogo foi recebida com fortes protestos pelo setor madeireiro no início deste ano, é um exemplo de como age o crime ambiental, explica Aranha: o resultado final da fiscalização no município contabilizou mais de 31 mil metros cúbicos de madeira apreendidos, cerca de 50 termos de interdição e 1.326 fornos de carvão destruídos, além da aplicação de multas no valor de R$ 31,8 milhões. Uma coisa é certa, diz o chefe de fiscalização do Ibama: o modelo de desenvolvimento adotado na Amazônia está equivocado, e precisa mudar urgentemente. A seguir, leia os principais trechos da conversa com Leandro Aranha.




Repórter Brasil - Diante dos altos índices de desmatamento no Pará, e a partir do caso de Tailândia, como definiria os setores madeireiro e agropecuário, atualmente a principal força econômica do Estado?


Leandro Aranha - São criminosos. Chamar de empresários não dá. É um círculo que inclui o meio político, donos de grandes extensões de terras que são grileiros - ou compraram de grileiros -, vêm do Sul, Sudeste e Centro-oeste do Brasil e se associam com empresários locais. Praticam desde roubo de madeira a crime ambiental de desmatamento, trabalho escravo, crimes no campo. São exatamente as mesmas pessoas.


Qual é, na sua opinião, a origem do crime ambiental no Pará?O que se produz de forma legal no Estado?


Gado, soja, dendê; tudo tem em seu princípio o crime ambiental do desmatamento. A economia paraense gira em torno da ilegalidade. Mas também, como ganhar dinheiro legalmente, quando ainda não existe legalização fundiária, quando não se confia nos cartórios, quando foram flagradas várias fraudes no Iterpa [Instituto de Terras do Pará], no próprio Incra? Se criou uma instabilidade fundiária no Estado muito grande, e grande parte das ilegalidades parte daí.




De que forma esse modelo econômico afeta a população?


Quer dizer, depois da passagem da operação Arco do Fogo por Tailândia, com o fechamento das serrarias e carvoarias, quase 8 mil pessoas perderam seus empregos...A avaliação é simples: têm alguns ganhando dinheiro, outros não. Se formos reparar, o IDH de Tailândia, por exemplo, não melhorou nada nesses últimos anos com a atividade madeireira. No município de Dom Eliseu, que tem "desenvolvimento" há mais tempo, com desmatamento, produção de carvão, guseiras próximas, grande criação de gado, etc, qual o IDH do povo? Mas o Ibama não tem que se preocupar com isso. O Poder Público tem, o Ibama não. Até temos uma preocupação, mas não é nossa função. Devemos fomentar uma forma alternativa de exploração, que conserve o meio ambiente e dê condições dignas à população hoje. Em Goianésia, município vizinho de Tailândia, por exemplo, a Delegacia Regional do Trabalho, que esteve lá em julho, flagrou condições de trabalho absurdas; é tudo ilegal. Quer dizer, isso é desenvolvimento? É esse desenvolvimento que a gente quer para a Amazônia? Um monte de gente perdendo mão e braço em serraria, é isso? Isso vale ter ações valorizadas na Bolsa de Nova York? Eu não acho que isso seja desenvolvimento.


Nesse cenário, qual seria então a função do Ibama?


O desmatamento da Amazônia é crime federal. Lei 9605, previsto na lei de crimes ambientais, e é disso que a gente cuida. Essa é a matriz, a lei que criminaliza tudo isso. A gente pune quem não cumpre. Esse é o trabalho da fiscalização do Ibama.


E as punições funcionam? Muito se ouve dizer de multas aplicadas e nunca recolhidas...


O que acontece não é só a multa. O Ibama embarga, paralisa e apreende. Apreendemos uma empilhadeira que custa 400 mil reais em Tailândia, e isso causa algum impacto. A multa não é a principal preocupação do infrator, e sim o embargo da área e a apreensão de bens e equipamentos. A ação do Ibama está paralisando uma atividade ilegal. Outro dia li no jornal que o gado do Pará está indo para o Mato Grosso. Graças a Deus, sinal de que estamos trabalhando bem. É a expulsão de um gado ilegal, criado em Unidades de Conservação, em áreas griladas onde teve muito sangue derramado; isso só me traz alegria. Não pode haver uma preocupação com a economia quando a mesma se baseia na ilegalidade. O Estado que se prepare para ganhar dinheiro de forma legal.


Mas como ficam as famílias de trabalhadores que dependem de atividades irregulares?


Tirar o ganho de uma família é muito complicado e doloroso, mas por trás do carvão que ela produz ilegalmente, por exemplo, tem uma guseira comprando. Tem um grandão se beneficiando atrás disso. O pequeno carvoeiro, agricultor familiar, tem quatro forninhos, roça, tira a madeira. Quando acaba, precisa de mais madeira, e assim ele vai. Esse trabalho de formiguinha de várias famílias tirando madeira foi o que acabou com boa parte da Caatinga e do Cerrado nordestinos. Não podemos ignorar o impacto que isso tem. É claro que tentamos tratar de forma bem diferente um grande e um pequeno infrator, mas o problema é um só.


E não dá para fiscalizar o topo da cadeia produtiva, penalizar os compradores do carvão, por exemplo?


É um jogo de gato e rato. O que a gente sabe é que há esquentamento desse carvão, como acontece na madeira. Quando ele chega na porta da guseira, quando a gente poderia fiscalizar, já está legalizado. Então a gente não consegue ter uma ação mais efetiva, e tem procurado atingir os fornos. O que tem que haver é alternativa econômica pra essas populações, mas não vejo nenhum dirigente político e nenhum empresário da região se mexer pra isso.


Quais seriam, na sua opinião, alternativas viáveis?


Poderíamos ter manejo de várias espécies nativas, como cupuaçu, açaí, andiroba, copaíba etc, que têm um valor agregado muito maior; manejo agroflorestal, e comunitário. Não vamos criar os latifúndios do cupuaçu, os latifúndios do açaí. Porque não vai adiantar nada. A idéia do brasileiro e dos bancos financiadores é financiar uma megaplantação empresarial de açaí, onde o coitado do trabalhador vai ganhar um salário mínimo; se for registrado em carteira, dê graças a deus. É isso que a gente tem que mudar. Mudar a matriz econômica do país, agregar valor aos produtos. Mas antes tem que ter regularização fundiária e zoneamento econômico ecológico. Sem isso, não adianta querer fazer outra coisa, ficamos nessa briga de gato e rato que, no fundo, interessa a muita gente.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Safado


O marginal Paulo Cesar Quartieiro
Por Otto Mendes Filho

O prefeito de Pacaraima e presidente da Associação dos Rizicultores de Roraima, Paulo César Quartieiro, que ficou nove dias preso na Polícia Federal, em Brasília, sob a acusação de posse de artefato explosivo e de formação de quadrilha, além de ter recebido multas de mais de trinta milhões de reais por crimes ambientais se disse muito chateado com o voto do relator, ministro AYres Britto, e disse "É muito difícil ser produtor aqui, tenho vergonha de pagar impostos nesse País" (há!, há!, há!, há! há!, há!, há!, há!) desabafou o criminoso, que em vez de estar presente na sessão do STF deveria estar preso, pois tentou assassinar indígenas que estavam legalmente em suas terras, usando armas compradas ilegalmente. Além do mais, duvido que esse safado pague algum imposto. Quanto ao voto do Ministro Ayres Britto, foi brilhante e destruiu todas as mentiras inventadas contra a demarcação em área contínua por marginais do exército, do STF e do Congresso Nacional. Mesmo assim, o amigo de Daniel Dantas, o Ministro Gilmar Mendes, já disse que o relator não convenceu ninguém (há!, há!, há!, há!, há!, há!). Não se iludam, brasileiros que querem a justiça ser cumprida, o STF é um esgoto cheio de ratos, assim como o Congresso Nacional, então, tenho certeza que o STF vai votar contra o povo brasileiro, contra os indígenas e contra a justiça, pois esta instituição trabalha para os interesses de poucos, assim como o já citado Congresso Nacional.
Este, na CPI dos Grampos, está fazendo o possivel e o impossivel para inocentar o marginal Daniel Dantas, amigo de Gilmar Mendes e de quase todos os deputados federais e senadores do Congesso, muitos dos quais são sócios do bandido, assim como muitos ministros do STF. E se várias autoridades estão sendo grampeadas, deve ser porque estão envolvidas em crimes, não é verdade? O grande problema não foi as escutas, e sim o que elas devem revelar sobre ministros, juizes e politicos. O povo brasileiro exige que todas as escutas sejam reveladas.

Mozeni Truká, mais uma vitima


Esse que tá falando aí em cima é o cacique Neguinho, do povo Truká, de Cabrobó.
Esse que tá olhando para ele é o atual governador de Pernambuco, Eduardo Campos.
O governador foi eleito há dois anos com o voto de muita gente, incluindo muitos dos milhares indígenas e quilombolas que vivem no Estado e que estavam arretados com as gestões anteriores.
Essa foto foi tirada no dia 20 de maio desse ano, durante a assembléia do povo Xukuru do Ororubá, em Pesqueira.
Se foto tivesse som, você poderia agora ouvir Neguinho falar do problema da criminalização das lideranças indígenas e da impunidade que cerca os crimes contra os povos, especialmente em Pernambuco.
Você também iria poder ouvir Neguinho pedir - mais uma vez - a punição para os quatro policiais militares que, em 2005, invadiram a aldeia truká e assassinaram Adenilson Viana e seu filho Jorge.
Alguns desses PMs envolvidos no crime continuam em Cabrobó e foram até promovidos.
Capaz de você ouvir também o cacique dizendo que, se não forem tomadas providências, mais algum líder poderia ser assassinado.
Pergunta o que fez o governador.
Eu não saberia responder.
Isso tudo foi três meses antes de o líder truká Mozeni Araújo ser assassinado na frente do comitê eleitoral em que tocava sua campanha para vereador.
O assassino, preso em flagrante, Maurício da Silva, nunca tinha sido visto mais gordo. Alegou que o crime tratava-se de uma vingança por uma discussão há mais de dez anos.
Até hoje nenhuma testemunha foi ouvida.
Desde 2001, é a quinta liderança truká assassinada.
Nenhum dos crimes até agora foi esclarecido.


MANIFESTO DAS ORGANIZAÇÕES SOLIDÁRIAS AO POVO TRUKÁ
"Morre o homem, mas não morrem os sonhos" (Neguinho Truká)
"A exemplo de Xicão Xukuru, o sangue das lideranças indígenas que escorrem fecundam a terra e faz nascer novas lideranças" (Zé de Santa – Vice-Cacique Xukuru)

Uma intensa tristeza se abate sobre todos os povos do Nordeste: foi brutalmente assassinado, no dia 23 de agosto de 2008 mais uma grande liderança indígena Truká: Mozeni Araújo. Este dia é mais um dia de sangue para o povo Truká. Mozeni Araújo foi abatido covardemente na cidade de Cabrobó por um pistoleiro, a crime de mando, em razão da luta histórica de seu povo pela efetivação de seus direitos. O assassinato é mais uma tentativa de fragilizar, fragmentar e desarticular o processo de organização dos povos indígenas. Mozeni exercia um papel primordial de ponderação, como facilitador, nos momentos de resolução de conflitos nas lutas enfrentadas e sua morte é resultado de uma ação premeditada, que busca silenciar a voz Truká.
Os Truká, no arquipélago de Assunção na cidade de Cabrobó, vêm se organizando há mais de 70 anos para retomarem seu território e concretizarem o sonho dos seus ancestrais. Esse processo de retomadas se inicia na década de 80 e se acelera na década de 90. A retomada realizada em 1999 é divisor de águas para demarcação e homologação em grande parte do território, e como conseqüência surge uma série de ameaças e violência contra os Truká. Além do embate com posseiros, o Povo representa forte resistência contra grandes projetos desenvolvimentistas, como a transposição do rio São Francisco, onde o território Truká encontra-se invadido pelo Exército brasileiro, e as barragens de Pedra Grande e Riacho Seco, que poderão trazer grandes impactos para a região ("Tudo isso é uma serpente. A cabeça tá nos nossos irmãos Truká e Tumbalalá; aqui, no Povo Anacé, está o rabo que é onde tá o pior veneno" - João, do povo Anacé, no Ceará, referindo-se à transposição).
É nesse contexto da resistência heróica às fortes pressões imprimidas contra esta comunidade que se inserem os motivos e interesses que envolvem o assassinato de Mozeni Araújo, assim como foi o brutal assassinato da liderança Truká Dena e de seu filho Jorge, com apenas 17 anos, no dia 30 de junho de 2005, estes assassinados por 4 policiais militares que estavam à paisana.Dena como Mozeni eram lideranças importantes nos períodos das retomadas de terra.
Quando não são assassinadas, as lideranças são vítimas de um sistemático processo de criminalização com o forte aval de segmentos do Estado brasileiro, principalmente, no caso do povo Truká, por agentes policiais e pela promotoria local. Os caminhos da criminalização e violência se estendem a outros povos indígenas no Nordeste e no Brasil, destacamos: Xukuru de Pesqueira, os Indígenas da Raposa Serra do Sol, os Guarani em Mato Grosso do Sul, os Cinta Larga em Rondônia e os Pataxó e Pataxó Hã-Hã-Hãe na Bahia.
"Nós que somos lideranças corremos este risco. Vivemos num País sem lei. Aqui se tira a vida de uma pessoa como se matam os passarinhos, principalmente em Pernambuco. É preciso que o mundo possa nos ajudar. Hoje se não bastasse matar nossas lideranças ainda tem o processo de criminalização. Vivo cercado de dois seguranças, sobretudo depois que sofri um atentado e morreram dois jovens que andavam comigo". (Marquinhos Xukuru ao desabafar e lembrar de seu pai - Xicão Xukuru - que teve sua vida ceifada por pistoleiros).
Há quinhentos anos que os povos indígenas são violentados nas terras do Brasil. Escravizados, perseguidos e mortos, tiveram que silenciar por séculos suas identidades indígenas como estratégia de sobrevivência. É visível o nível de vulnerabilidade das lideranças indígenas, constantemente ameaçadas e mortas; a força do modelo político-econômico que violenta seus direitos; a impunidade sobre os crimes contra lideranças; a demora nos processos de demarcação e titulação-posse dos territórios indígenas, como é o caso dos Truká e dos Tumbalalá, aceleram ainda mais acontecimentos dessa natureza, apresentando-se como uma verdadeira estratégia de vulnerabilizar, desgastar e intimidar a luta dos povos indígenas.
"Hoje a gente sofre, com essa dor, mas tudo que Mozeni foi para o povo Truká, nós não vamos deixar cair. A história do povo Truká continua. Hoje tão matando o nosso povo, mas não vão conseguir. Como fez o seu avó Acilon Ciriaco, Mozeni deixou seus filhos, deixou seu povo e nós não vamos desistir não." (Pretinha Truká).
MOZENI ARAÚJO era um homem de natureza terna e pacífica. Conhecido pela forma ponderada com que lidava com a intensidade dos conflitos iniciou muito jovem como liderança, construindo-se nas lutas pela retomada de seu território, em seguida, trabalhando como agente de saúde comunitário. Também era agricultor, logo cedo entrou na luta em defesa da terra, da água e do Povo Truká. Foi Vereador e atualmente era militante do PT e candidato a Vereador. Sua história não permite que os Truká se calem e sua passagem para o Reino dos Encantados nutre em seus herdeiros a força dos maracás.
Nós, diante deste crime repugnante, manifestamos nossa indignação e principalmente nossa solidariedade com a família de Mozeni Araújo e com o povo Truká. Exigimos as devidas investigações sobre os crimes cometidos e que os responsáveis respondam pelos seus atos. Exigimos que o Estado Brasileiro supere a violência neocolonizadora e venha garantir em sua integralidade os direitos fundamentais dos povos indígenas determinados nos tratados internacionais e legislação nacional.

Neste momento de dor, buscamos lembrar o que aprendemos com o povo Truká: seu grande espírito de luta!
NO REINO DE ASSUNÇÃO, REINA TRUKÁ!
ASSINAM ESTE DOCUMENTO:
APOINME, Articulação Popular do São Francisco, Articulação de Mulheres Trabalhadores da Pesca do Estado da Bahia, Articulação do Semi-Árido, MST, Movimento dos Pescadores da Bahia, MAB, MPA, NECTAS-UNEB, CPP, CPT, CIMI, AATR, IRPAA, AGENDHA, CENTRO MACAMBIRA, SINTAGRO, CONSEA – Petrolina, Centro de Cultua Luiz Freire, Plataforma DhESCA Brasil.



POVO TRUKÁ:
UMA TRAJETÓRIA DE LUTAS, LUTOS E LIBERTAÇÃO

Em memória de Mození Araújo, guerreiro e mártir do povo Truká.


No dia 23 de agosto, mais uma liderança truká, Mození Araújo, irrigou com seu sangue o árido solo do sertão pernambucano. Registros históricos revelam que desde o período colonial muitos guerreiros do local deram suas vidas em defesa da vida de seu povo.
O território tradicionalmente ocupado pelo povo Truká inclui um arquipélago formado pela majestosa Ilha da Assunção e dezenas de ilhotas. É, portanto, banhado pelas águas de Opara, que recebeu dos colonizadores o apelido de Rio São Francisco, sendo hoje carinhosamente referido pelos habitantes tradicionais e a população ribeirinha em geral como Velho Chico. A fertilidade das terras e sua estratégica localização, possibilitando acesso fluvial aos estados de Pernambuco e Bahia, despertaram muito cedo a cobiça dos invasores do interior do Nordeste.
Ainda no século XVII, durante o chamado ciclo do gado, atividade produtiva utilizada como estratégia de expansão e penetração interiorana do projeto colonizador europeu, as terras truká começaram a ser invadidas pelas fazendas. Relatórios do frei Martinho de Nantes, capuchinho francês que atuou nas missões sertanejas, descrevem as batalhas travadas pelos indígenas habitantes das ilhas do São Francisco contra os criadores de gado, apoiados pela Casa da Torre, localizada no litoral baiano. Fundada por Garcia D`Ávila e sustentada por sua descendência, a Casa da Torre se constituiu numa espécie de quartel general para promoção das invasões e esbulhos das terras pertencentes às populações originárias da região.
Ao longo dos anos, muitos invasores usurparam o território da Assunção. Além dos fazendeiros, também a Igreja e o governo de Pernambuco, a primeira no início do século passado e o último a partir da década de 60, integraram o rol dos grileiros.
Todo o sofrimento vivido nas décadas mais remotas, bem como a bravura e feitos heróicos dos guerreiros de então, ainda permanecem presentes na memória truká. Graças ao exercício da oralidade, de geração em geração, a história se atualiza e ganha contornos contemporâneos, servindo como instrumento de conscientização e mobilização das novas gerações.
É esta consciência, sempre atualizada, que nas últimas duas décadas vem impulsionando o povo Truká a expulsar, de uma vez por todas, os invasores de seu território, exorcizando em definitivo o fantasma da família D`Ávila e construindo uma nova história, com suas terras totalmente livres da presença de intrusos.
No momento, o projeto de Transposição das águas do Rio São Francisco, empreendimento do governo federal, representa uma nova ameaça às terras tradicionalmente ocupadas pelo povo. Mas a sabedoria e a experiência acumuladas durante séculos de lutas de resistência, são motivo de garantia e certeza de que, mais uma vez, a vitória será dos Truká.


O ressurgimento do Reino da Assunção
Não obstante à incansável e invencível resistência dos seus ocupantes originários, no início dos anos 80, grande extensão das terras da ilha da Assunção e numerosas ilhas pequenas encontravam-se sob o domínio dos invasores. Poucas famílias indígenas conseguiam se manter em algumas ilhotas de difícil acesso, enquanto outras eram utilizadas como mão-de-obra barata pelas fazendas invasoras.
No ano de 1981, os Truká iniciam uma reação contra aquela situação de opressão em que se encontravam e retomam parte da terra invadida pela SEMEMPE – Companhia de Sementes e Mudas de Pernambuco. Nesse período, foi assassinado o líder Antonio Bingô. No ano seguinte, o povo realizou nova retomada, outra vez nas terras terras invadidas pela SEMEMPE. A polícia de Cabrobó e funcionários da empresa estatal reagiram com muita violência. Em função dessas ações da comunidade, a Funai começa a reagir e dois anos depois inicia o processo de demarcação da terra, até hoje não concluído.
O procedimento demarcatório permaneceu parado durante muitos anos. Neste ínterim, uma grande ofensiva de violência avança contra o povo: seqüestros, torturas e assassinatos, passam a ser praticados contra os indígenas pelos pistoleiros das fazendas, que além da atividade agropecuária, passaram também a cultivar maconha. Este cultivo, nos anos 90, propagou-se pelo sertão pernambucano, na região denominada polígono da maconha.
Em face do grande número de crimes e da total impunidade, em 1992, o Cimi Nordeste publicou um documento-denúncia intitulado Truká: violência, impunidade e descaso, tendo a divulgação do mesmo despertado o interesse da Anistia Internacional, que repercutiu as denúncias alí registradas e solicitou providências por parte das autoridades nacionais.
Diante da completa inoperância do governo brasileiro, os Truká, treze anos depois da primeira retomada, reiniciam o processo de reocupação do arquipélago. Em maio de 1994, ocupam a fazenda de Apolinário Siqueira, um dos últimos coronéis da região, conhecido por Xinxa, o rei da cebola, e temido por todos. Em 1995, retomam outra faixa de terra que se encontrava sob a posse do fazendeiro Cícero Caló. A mobilização do povo manteve-se num processo contínuo, culminando com a retomada definitiva de todo o arquipélago, no ano de 1999, quando todas as fazendas foram ocupadas, tendo sido expulso todo o gado nelas existentes. Como há apenas uma ponte que liga a grande ilha da Assunção ao continente, mais precisamente à cidade de Cabrobó, a ponte serviu como corredor para a gigantesca boiada, que não tendo para onde se deslocar, se dispersou pelas ruas da cidade, provocando grande tumulto entre os moradores.
Nessa histórica e heróica empreitada, as lideranças e alguns membros da comunidade sofreram toda sorte de perseguição e violação de seus direitos. Foram violentamente reprimidos por agentes do poder público, sendo a Ilha da Assunção invadia várias vezes por policiais federais e militares, que espalhavam terror entre a população e praticavam torturas físicas e psicológicas. Como parte da estratégia de criminalização das lutas do povo, muitos indígenas foram processados. O cacique Aurivan, mais conhecido como Neguinho truká, chegou a ser preso.
Mesmo depois da expulsão dos fazendeiros, a polícia ainda continuou a perseguir as lideranças. No ano de 2005, quatro policiais militares invadiram a terra indígena e assassinaram o líder Adenílson Vieira e seu filho Jorge, quando estes se encontravam numa festa da comunidade com cerca de 600 pessoas. A principal testemunha ocular dos dois homicídios era Mození Araújo, assassinado há 8 dias.
Com o arquipélago já totalmente livre de intrusos, a luta agora está direcionada para recuperar a parte do território tradicional que fica no continente, à margem esquerda de Opara. Por esse motivo, em 2007, as comunidades truká se mobilizaram mais uma vez e ocuparam uma fazenda localizada na área em que estão sendo construídas, pelo exército brasileiro, as obras para transposição das águas do São Francisco. É mais uma batalha homérica para o valente povo do rio.
Contudo, a recuperação do domínio total sobre o arquipélago, hoje sob a posse plena de seus habitantes originários, provocou mudanças substanciais na vida do povo.
No imaginário Truká, seu território tradicional conforma um reino. A Ilha da Assunção representa o coração desse reino. A idéia de reino que durante o processo de colonização se configurou na memória de alguns povos indígenas do Nordeste, não corresponde às tradicionais monarquias, constituídas por um poder totalitário opressor que domina outros povos e os expropria de seus territórios e riquezas naturais. Refere-se a um reinado mítico, onde não há soberanos nem vassalos. Trata-se de um reino com contornos escatológicos, “governado” pelos encantados que se constituem nos principais protetores da terra sagrada onde aqueles povos habitam. Aproxima-se mais da idéia de Reino de Deus da teologia cristã. O esbulho praticado contra suas terras representou um processo de dessacralização, laicização e profanação do espaço sagrado, os territórios tradicionais.
A expulsão dos invasores das ilhas e a conseqüente recuperação territorial, significa muito mais que uma simples posse fundiária, representa o fim do exílio, mais do que isso, a recriação do espaço sagrado, do território mitológico, o reencontro das pessoas e do povo consigo mesmo. É o renascimento do Reino da Assunção e esse sentimento está registrado na obra de produção coletiva das comunidades, recentemente publicada – No Reino da Assunção, Reina TRUKÀ.


De canela cinza à Nação Truká
Até os anos 90, a população do município de Cabrobó e da circunvizinhança, costumava referir-se aos moradores da ilha da Assunção como “canelas cinza”, essa expressão de sentido depreciativo e discriminatório era motivo de vergonha e humilhação para os habitantes locais. Graças ao seu espírito guerreiro, o povo reconquistou a terra, a auto-estima e a autonomia, sendo hoje referenciado pelos cabroboenses e demais regionais como povo Truká. Percebendo essa positiva mudança de comportamento por parte da população do entorno, Mození costumava repetir: “nós passamos de canela cinza à nação truká”.
A frase por ele imortalizada traz consigo todo o simbolismo do significado da consciência coletiva de pertencimento a um povo e dentro dessa coletividade a importância de cada indivíduo, cada guerreira, cada guerreiro, com sua trajetória de vida, com a marca de seu corpo, antes canela cinza, agora corpo expressão da alteridade, da dignidade, da honradez, da identidade Truká, da qual Mození sempre continuará a fazer parte, pois, “o que criamos passa a ficar no mundo com nossa marca, com a marca de nossa presença ou, então, de nossa ausência, mas sempre nossa marca”.


Saulo Ferreira Feitosa


Brasília, 31 de agosto de 2008