(publicado na Revista Cabanos. Maceió, FUNESA, nº 1, jan./jul. 2006, p.93-109)
OS ÍNDIOS WASSÚ E A GUERRA DO PARAGUAI: HISTÓRIA,
MEMÓRIAS E LEITURAS INDÍGENAS SOBRE O CONFLITO
Edson Silva*
RESUMO
Os antepassados dos Wassú, assim como os de outros povos indígenas no Nordeste, participaram da Guerra do Paraguai. O que nos informam os registros documentais sobre isso? O que dizem os Wassú sobre a Guerra? Qual o sentido eles dão as memórias sobre aquele conflito? Os estudos recentes sobre a chamada “grande guerra” inovam pela superação das tradicionais ênfases no conflito bélico, nas descrições de batalhas ou biografias de heróis. As atuais abordagens procuram compreender as diversas fases do conflito, bem como os diferentes grupos sociais nelas envolvidos. Nesse texto nos propomos discutir a história e as memórias Wassú sobre a Guerra do Paraguai, situadas nos debates atuais sobre aquele conflito, objetivando contribuir para o maior conhecimento da história indígena no Nordeste contemporâneo.
Palavras-chave: índios Wassú, Guerra do Paraguai, história, memórias.
A Aldeia Urucú (Cocal)
As origens da Aldeia Urucu, atual Cocal, assim como as Aldeias de Escada (PE) e de Jacuípe (AL), remontam ao período final dos combates aos quilombolas de Palmares. Esses aldeamentos forma fundados em terras doadas pelo Coroa portuguesa como recompensa aos índios pela participação nas forças coloniais que destruiu o reduto palmarino. Essas Aldeias foram formadas por índios de antigas missões franciscanas, nas regiões próximas no litoral Sul dos atuais Estados de Alagoas e Pernambuco, e mais índios que vieram da Paraíba acompanhado as tropas de Domingos Jorge Velho que estando combatendo os índios na chamada “Guerra dos Bárbaros” no Açu (RN), foi convocado para deslocar-se para guerrear contra os Quilombos dos Palmares. (Silva, 1995).
Em um Relatório oficial de 1856 sobre as Aldeias indígenas em Alagoas, a “Adêa do Urucu”, como naquela época chamava-se a atual Aldeia Cocal, foi informado que a Aldeia era titulada em quatro léguas de terras em quadro, que foi doada “não só aos índios, como aos soldados, que sob o comando do Mestre de Campo Jorge Velho, auxiliarão aquelles na conquista dos negros de Palmares”[1]. A Aldeia estava localizada em uma região cobertas de matas e com terras bastante irrigadas, banhada por rios caudalosos e vários riachos seus afluentes.
As terras férteis onde se encontrava o a Aldeia “Urucu” eram motivo das invasões dos senhores de engenho, como registrava o Presidente da Província de Alagoas em 1870 no seu Relatório a Assembléia Provincial, quando informou, “Acha-se esta aldeia situada à margem esquerda do rio Mundaú, sete léguas distante da capital, e próxima a florescente povoação de Nossa Senhora da Graça do Murircí. Seu território cheio de muitos engenhos de fabricar assucar, além de muitas plantações de algodão, solo mui fértil, continua em augmento.” [2]
Mas, uma outra versão que aparece em documentos oficiais, dá conta que a Aldeia foi constituída durante a Guerra dos Cabanos (1831-35) por índios vindos das Aldeias de Barreiros e Jacuípe. Através de registros históricos temos conhecimento que os índios das aldeias situadas na região estiveram envolvidos tanto no lado dos cabanos, como ao lado das tropas legais que combateram aqueles revoltosos que possuíam acampamentos nas Matas do Tombo Real, localizada entre essas aldeias. (Silva, 1995; Lindoso, 2005).
Na mesma perspectiva o Jornal Correio de Alagoas informava em 1905 que o aldeamento do Cocal situava-se “à margem esquerda do Rio Camaragibe, a 5 léguas de Leopoldina, no Passo de Camaragibe, e foi fundado durante a Rebelião de Panellas de Miranda (uma alusão a Cabanada) por alguns índios emigrados de Barreiros e Jacuype”[3]
O intenso fluxo de combatentes durante a Cabanada, deve ter influenciado a composição do contingente populacional das Aldeias localizadas nas proximidades. Historicamente os índios das aldeias de Escada e Jacuípe sempre foram chamados pelo Estado para atuarem como guardiões tanto contra o roubo de madeiras das Matas, como para evitar as fugas ou procurar escravos negros e criminosos que lá buscavam refúgio. Além disso, finda a Cabanada, o Governo Imperial fundou duas colônias militares, como forma de manter o controle estratégico geopolítico na região. Essas colônias estavam situadas na fronteira entre as duas Províncias, uma em cada lado, Leopoldina (AL) e Pimenteiras (PE), e foram instaladas em terras dos aldeamentos oficialmente declarados extintos. (Silva, 1995).
A extinção do aldeamento com a medição de suas terras foi pedido desde em 1860. Naquele mesmo ano O Diretor Geral dos Índios informava ao Presidente da Província que ele arrendara as terras indígenas com o consentimento dos índios, o que foi pouco provável. Dizia O Diretor,
Essas terras são de propriedade dos índios, que estão por mim arrendadas a três annos ao Comendador Dr. Manoel Rodrigues Leite e Oiticica, por Escritura Pública e que nenhuma dúvida resta pertencer ellas aos índios como se seos títulos se evidencia alem das provas, as mais irrevogáveis por isso eu e os índios pedimos a V. Excia. A justiça, e proteção ao Governo para que seja demarcada já a Aldeia urucu para de uma vez se desenganar o Sr. Capitão José Marinho e outros intrusos proprietários mercadores na sobredita Aldeia, esse direito num lhes assiste para assenhoarem-se a posse de terrenos dos índios e desfrutando com graves injurias dos mesmos índios. [4]
Após a declaração oficial da extinção dos aldeamentos em Alagoas em 1872, seguiu-se o processo de medição e demarcação das terras. Em 1876 o responsável pelas medições das terras do aldeamento informava a Presidência da Província uma “Relação de rendeiros existentes na Sesmaria Urucú”, onde são citados 32 nomes, acompanhados pelos valores atrasados e não pagos dos arrendamentos. O processo de demarcação a semelhança de outros lugares, como ocorreu na Aldeia da Escada/PE, favoreceu os tradicionais invasores do território indígena com o reconhecimento de suas posses, que passaram a ser consideradas legítimas. Aos índios foram destinados, conforme previsto em lei, uns poucos lotes individuais, de diferentes tamanhos para casados e solteiros. A outros índios restava trabalharem para os senhores de engenho em suas próprias terras ou migrarem, dispersando-se pela região.
No final da década de 1970 após uma série de conflitos entre índios e não-índios, a FUNAI iniciou estudos para demarcação das terras dos índios Wassú que compreendiam as Aldeias Cocal, Pedrinhas, Fazenda Freitas e Serrinhas. Em setembro de 1986 a área foi declarada de ocupação indígena. Alguns fazendeiros, posseiros e fornecedores de cana apelaram e receberam apoio da Justiça para não saírem das terras indígenas, mas apesar dos processos judiciais que tramitavam a área foi demarcada em 1988. O clima de tensão aumentou, e em 1991 ocorreu o seqüestro e assassinato do Cacique Hibes Menino. A demarcação foi homologada naquele mesmo ano, deixando de fora a parte por onde passa BR-101 e os índios Wassú Cocal, como se autodenominam, continuam reivindicando a demarcação de 2.800 hectares. (PETI, 1993, p.63-65).
A Guerra do Paraguai: novas abordagens
O conflito, que se convencionou chamar a Guerra do Paraguai (1865-1870), vem sendo, nos últimos anos, objeto de vários estudos, que baseados em amplas pesquisas documentais, possibilitaram novas abordagens sobre o confronto armado que sacudiu o Cone Sul no quartel final do século XIX. Nessa perspectiva, foram superados os trabalhos tradicionais que enfatizaram aspectos militares, bem como as biografias de heróis oficiais da Guerra.
Foi deixado de lado também o enfoque positivista republicano que acusava o Brasil monárquico pelo genocídio imposto ao Paraguai. Assim como foi abandonado o enfoque marxista de fins da década de 1960, que enfatizava um suposto nacionalismo progressista paraguaio, e apontou o expansionismo do imperialismo britânico como responsável pela Guerra. O conflito passou a ser visto como regional, uma disputa entre os países envolvidos pela hegemonia na região do Prata. (Doratioto, 2002: 19).
Com os estudos mais recentes foram evidenciados outros aspectos da Guerra do Paraguai (GP). Através dos novos enfoques, foram discutidas as formas do recrutamento, a participação negra de escravos e libertos, de mulheres, as imagens (fotografias, pinturas e caricaturas) da guerra, etc. Todavia ainda foi pouco estudada a dimensão da participação indígena naquele conflito, bem como as narrativas e as memórias resultante dela.
Nos novos estudos sobre a Guerra do Paraguai (1865-1870) as análises sobre o recrutamento são unânimes em apontarem que no início do conflito a perspectiva de sua curta duração, somando-se a imagem construída de uma guerra da civilização moderna contra a “barbárie” paraguaia indígena guarani que deveria ser derrotada, motivou o alistamento de muitos para participar no front de combates. Com o prolongamento do conflito, além de manifestações de protestos em todas as províncias do Brasil, tornou-se difícil o recrutamento de novos soldados, inclusive com a resistência dos membros Guarda Nacional convocados para a Guerra.
Mesmo tendo a libertação de escravos como uma primeira solução para suprir as necessidades de combatentes, com a continuidade do conflito, o Governo Imperial através de decreto criou e incentivou os corpos de Voluntários da Pátria. Ainda assim, em uma fase crucial da Guerra, quando depois de seguidas derrotas os aliados partiam para batalhas ofensivas decisivas, os entusiasmos patrióticos minguaram e os alistamentos diminuíram. (Lucena Filho, 2000:14).
Nesse momento foi usado o velho e conhecido método do recrutamento forçado, que atingiu os membros do partido opositor ao que estavam no poder em cada província, os contrários a ordem política e social vigente, os considerados desordeiros, perigosos, os presos e condenados por crimes, e principalmente a populações pobre, os habitantes das cidades do interior, das zonas rurais, a exemplo dos índios no Nordeste. Para fugir das perseguições das forças legais, os considerados como potenciais “soldados-voluntários” elaboraram diversas estratégias contra o recrutamento forçado.
Na documentação das Diretorias de Índios nas Províncias encontramos diversos ofícios que se referem ao processo de recrutamento de índios para a GP. É clara a truculência empregada pelos diretores das aldeias no alistamento forçados dos índios como Voluntários da Pátria. As justificativas são sempre a manutenções da ordem e da paz nas aldeias.
O Diretor Geral dos Índios em Alagoas escreveu em 1866 aos diretores das aldeias com uma “ordem de recrutamento dos índios que estiverem ao seu alcance”. [5] O desamparo em que se encontrava em 1866 as famílias dos índios para a GP era motivo de recusa dos novos voluntários. Em outra correspondência naquele mesmo ano ao Presidente da Província, insistia o Diretor Geral na necessidade de pagar os vencimentos às famílias, pois sem a vantagem pecuniária 40 índios da Aldeia de Jacuípe que atenderam a convocação para o recrutamento, “esfriarão todos”.[6]
As fugas para se esconder nas matas ou desaparecimento do seu local de moradia, as deserções de tropas já formadas, as declarações de doenças, os casamentos até com mulheres mais velhas, homens que se vestiam de mulher, os ataques de grupos armados às forças legais que traziam recrutados a força para a capital, ou ataques a cadeias do interior libertando os presos a serem enviados como soldados para a guerra, rebeliões, etc. foram às muitas formas de resistências ao recrutamento que ameaçaram a ordem social vigente. (Doratioto, 2002: 264-265; Lucena Filho, 2000: 97-128).
Recrutamento e militarização dos índios da Aldeia Cocal
O recrutamento indígena e a militarização das aldeias foi uma prática recorrente na História do Brasil. As aldeias indígenas além de reserva de mão-de-obra foram tidas também pelo poder político oficial como local de recrutamento, para formação de tropas nas guerras contra outros povos considerados hostis à Coroa, nos combates a quilombolas, a movimentos contrários a ordem estabelecida pelo Estado ou pelo grupo político no poder. Assim, a militarização indígena ocorrida desde os primeiros tempos da colonização representou também uma fonte de demonstração de poder nas disputas locais.
Mas os indígenas não foram passivos nessa condição. Não aceitaram o recrutamento simplesmente como uma atitude colaboracionista, de uma aliança ao poder vigente. Temos que perceber como esse recrutamento foi lido a partir da ótica dos indígenas. Em qual contexto ocorreu o recrutamento? Como essa participação em milícias armadas a serviço do Estado ou de um chefe político local serviu de barganha para os interesses indígenas?
É necessário desconstruir imagens até então sedimentadas sobre a História e esses povos. Os novos estudos são pautados por outras preocupações, “Importa recuperar o sujeito histórico que agia (age) de acordo com a sua leitura do mundo ao seu redor, leitura esta informada tanto pelos códigos culturais da sua sociedade como pela percepção e interpretação dos eventos que se desenrolavam”. (Monteiro, 1999, p.248).
Todavia, é preciso ter presente as observações de Thompson sobre cultura, “não podemos esquecer que ‘cultura’ é um termo emaranhado, que, ao reunir tantas atividades e atributos em só feixe, pode na verdade confundir ou ocultar distinções que precisam ser feitas. Será necessário desfazer o feixe e examinar com mais cuidado os seus componentes: ritos, modos simbólicos, os atributos culturais da hegemonia, a transmissão do costume de geração para geração e o desenvolvimento do costume sob formas historicamente específicas das relações sociais e do trabalho.” (1998, p. 22).
Os índios da Aldeia Urucú e os das demais aldeias próximas, como dito anteriormente, foram recrutados para milícias publicas. Na documentação sobre a Aldeia Urucú é citado várias vezes o Capitão Antonio Salazar como uma espécie de comandante das tropas indígenas. Em 1860 Antonio Salazar se dirigiu ao Presidente da Província “lembrando da marcha que fis com os meos subalternos a S.M.I..” para pedir víveres alimentares no retorno de sua gente a Aldeia, como explicou, “a fim de retirar a minha gente o que não terem o que posão comer em caminho, para V. Excia. Abonar alguns viveres que dê para a viagem”. [7]
Finda a Cabanada o Estado temia os índios que continuaram armados, após terem participado nos combates aos revoltosos cabanos. A preocupação está registrada em um documento que exigia de Salazar a devolução do armamento em seu poder e dos índios por ele liderados, “mandei ao Cocal, exigir do capitão dos Índios Antonio de Souza Salazar, o armamento nacional, que tenha em seo poder, respondeome este, que não entregava”.
O medo dos índios armados estava relacionado a acontecimentos passados e contemporâneos, como dizia uma autoridade, “o animo deliberado em que se achão aquelles índios de conservar em seo poder o armamento para fins sinistros, como muitas vezes tem dado provas, bem como no anno de 1848 que veio em seo séqüito a hum sitio deste Engenho denominado cachoeira e roubou a dois portugueses, e caso bem resente de ter elle e seu coito na parada União assassinado publicamente nas ruas da povoação de Camaragibe, a hum soldado do Tenente Coronel José Ignácio de Mendonça”. [8]
A desobediência dos índios de Cocal ao Inspetor de Quarteirão (autoridade policial local), fez com que o Subdelegado acusasse Antonio Salazar e os índios do aldeamento, “neste distrito de Soledade no qual compreende huma Aldeia denominada Cocal, esta composta de gente de diferentes coalidades, e muito poucos índios, e como fôce o pior lugar destas mattas”. [9] Mas, o Diretor Geral dos Índios enviou a Presidência da Província um ofício, defendendo os índios e o Capitão Salazar, questionando as perseguições do Subdelegado e lembrando que eles sempre colaboraram com as autoridades policiais, exaltando “os serviços prestados por este Capitão aquela delegacia (Camaragibe)”, sendo Salazar o responsável pela proteção das matas contra o roubo de madeiras. E afirmava ainda o Diretor que os índios “são os indivíduos mais promptos em cumprirem os deveres do Governo”, ressaltando “a convicção que tenho de serem elles, os súbditos mais fieis da Coroa e ao Governo”. [10]
Em Alagoas os índios de várias aldeias foram também recrutados para o trabalho em obras públicas como a abertura de canais, obras de saneamento e aterros de mangues em Maceió. Em um ofício que acompanhava uma lista de desertores, informava o Diretor Geral dos Índios, “Os lotes de índios que por ultimo disertaram, do Cocal ahinda não tinhão chegado á Aldeia até a sahida da Companhia. Já dei ordens para recrutar os solteiros, e remeter os casados prezos tanto para darem conta dos cavallos, como a serem congregados ao trabalho.” [11] As péssimas condições de trabalho, inclusive com morte de alguns índios, provocou fugas de outros, xukuru-kariris de Palmeira dos Índios e wassús. (Antunes, 1984).
Os Wassú e a Guerra do Paraguai
Em um depoimento recente, a partir de suas lembranças, o índio Wassú conhecido por “Seu” Zuca fez uma leitura sobre a Guerra do Paraguai e o Capitão Salazar,
Outra coisa que eu tô alembrando também foi a Guerra do Paraguais. Essa Guerra de Paraguais que houve daqui e de todo as aldeias, os povo de índios. E esses povo de índio que foram desse Capitão Salazar, foram com outras entidades que eram guerreros tamén. Ele voltou como capitão da Guerra do Paraguai. Ele sabia com o batalhão dele. Quando ele recuava e ele sempre dizia “ninguém vai na minha frente”. Aquela turma era sempre atrás dele. Ele só recebia aquelas pancada de bala e nenhuma atingia ele. Quando era de noite, ele juntava com o povo dele botava aquelas erva do mato, só por causa do sangue pisado. A bala não entrava nele. Só perdeu uns guerrero porque ele foi à frente. Quando entrou na frente dela, a bala atingiu ele. Tudo que tava por trás dele, nenhuma bala foi atingida. [12]
Os índios das Aldeias Jacuípe e Cocal participaram da Guerra, como afirmava o Diretor Geral dos Índios em Alagoas, quando reconheceu o direito aos vencimentos pelas famílias dos voluntários, “Eles tem direito a vencimentos de duzentos reis diários que concede a Lei provincial do ano passado próximo às famílias dos voluntários”. [13]
As memórias sobre a participação indígena na Guerra e sobre o Capitão Salazar, são constantementes associadas e evocadas pelos Wassú para reafirmarem seus direitos às suas terras. A exemplo das entrevistas realizadas 1978 pelo antropólogo Clóvis Antunes (UFAL) com Manuel Honório da Silva, que se declarava líder do povo indígena “porque recebeu ordens de seu avô, José Tomás Marques Flores, e este, por sua vez, recebeu ordens do Capitão Salazar para aconselhar o grupo”. O pesquisador registrou que Manuel “Falou entusiasmado do Capitão Salazar. ’Era um capitão temido. Foi para a Guerra do Paraguai, e quando voltou, recebeu do Imperador Dom Pedro II quatro léguas de terra em quadro para sua tribo cuidar da roça’”. [14]
A vinculação do direito às terras como recompensa recebida do Imperador pela participação na Guerra do Paraguai também é evocada por outros povos indígenas no Nordeste, a exemplo dos Xukuru do Ororubá (Pesqueira/PE) e os Fulni-ô (Águas Belas/PE). Nesses dois povos os mais velhos contam que seus antepassados “venceram a Guerra”, e que por esse motivo herdaram as terras que vivem por direito, pelo “sangue derramado” dos antepassados nos combates naquela Guerra. (Silva, 2005).
O líder Manuel Honório em uma longa reportagem publicada pela Imprensa Universitária UFAL/1979, frente às invasões do território indígena, reafirmava o direito a terra como herança da recompensa pela participação na Guerra do Paraguai, “A terra era de todos os índios como agora está meia légua de terra é de todo mundo que mora aqui. O Imperador Dom Pedro II deu de presente aos índios para seus netos e bisnetos, 4 léguas em quadro, aos índios que se alistavam na brigada de Guerra do Paraguai. Agora só existe uma meia légua de terra. Os homens brancos tomaram tudo.” [15]
A memória sobre o Capitão Salazar foi também acionada, como constatou a citada publicação,
O capitão Salazar está ainda na memória dos mais velhos do aldeamento do Cocal. A cabocla Dolores de Oliveira Freitas afirmou: - ‘O índio mais velhos que recebeu terras do Imperador Dom Pedro II foi o Capitão Salazar; participou da brigada na Guerra do Paraguai. Ele era o chefe dos índios do Cocal. O Rei deu de presente como prêmio, as terras da Aldeia de Cocal porque os índios participaram da Guerra do Paraguai’.
A matéria jornalística trouxe mais um depoimento em que outro indígena fez a sua leitura sobre o mesmo tema,
E José Manuel de Souza, apelidado de ‘Seu Paulo’, com 50 anos de idade e sete filhos, confirmou: ‘O Capitão Salazar de Souza, o chefe dos índios de Cocal, ficou por aqui porque Dom Pedro II achou que ele podia ficar. Quando o Rei esteve em perigo, juntamente com o Marechal Deodoro da Fonseca, chamou ele os índios a atenção para ir a Guerra Salazar pegou a fita de Capitão e foi para a brigada lutar na Guerra do Paraguai.
Foram 14 índios para a Guerra do Paraguai e duas mulheres. Uma das mulheres chamava-se Puco-Puco e a outra Lambu. Tem esses nomes porque índio antigamente não tinha nome certo. Eles tinham nome de bicho do mato. Morreu na Guerra somente um índio’. [16]
Compreender os significados das memórias, das narrativas sobre a Guerra do Paraguai para os Wassú, é compreender a “história de experiências”. Um debruçar sobre essas narrativas, possibilita entender como “pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram experiências”. (Alberti, 2004:25). Essas experiências foram/são marcantes porque foram intensamente vividas. As narrativas do povo Wassú nos ajudam ainda “entender como pessoas e grupos experimentaram o passado e torna possível questionar interpretações generalizantes de determinados acontecimentos e conjunturas”. (Idem, 26).
Os Xukuru do Ororubá relatam que os seus antepassados voltaram com condecorações da Guerra do Paraguai, “... o Irmão da Hora trouxe um terno, de reis. Digo, porque o terno eu vi. De coroa, galão e todo, porque ganhou esse prêmio Irmão da Hora, Antonio Molecão e Antonio Tavarinho”.[17] Em seus relatos, os Xukuru falam ainda de quepes, medalhas, espadas, “diplomas da Guerra”, roupas e outros adereços militares, além dos “títulos de terra”, trazidos pelos que retornaram da Guerra do Paraguai. Autores destacam o “heroísmo” do Cabo Zeferino da Rocha, morador do “Sítio Goiabeira no alto da Serra” [do Ororubá], veterano da GP, membro do “Trinta de Voluntários”, composto de índios xukurus, “todos condecorados depois com medalhas de Guerra e Bravura”. (Barbalho, 1977:71; Wilson, 1980:42).
Um índio Wassú também na referida matéria publicada pela UFAL, citava possuir adereços da Guerra do Paraguai,
Para provar que os índios da Aldeia de Cocal participaram na Guerra do Paraguai, Cícero Honório da Silva, com grande entusiasmo, afirmou: ‘Tenho comigo ainda a estrela do chapéu do capitão Salazar’. E Manuel Honório da Silva prosseguiu; ‘Eu tenho a espada do Capitão João Tomás Marques das Flores que foi o último capitão dos índios de cocal. E quando me entregou a espada, disse: ‘Não dê jamais essa espada a ninguém. Ela é também a minha herança e minha glória’. Imediatamente levantou-se foi para casa. Após alguns minutos, trazia na mão uma espada de prata dentro de uma bainha também de prata. Muito contente e feliz disse; ‘Eis aqui a espada que tenho como herança’. [18]
O antropólogo Clóvis Antunes traz em seu livro (inédito) Tribo Wassú: os caboclos do Cocal uma foto datada de 1978, em que Manoel Honório da Silva “o pajé dos Wassú do Cocal” segura na mão uma espada “que pertenceu ao Capitão João Tomás Marques das Flores que foi alistado como Voluntário da Pátria durante a guerra do Brasil com o Paraguai” (Antunes, 1985, p.24).
Quando o antropólogo entrevistou Manuel Honório da Silva em 1981, sobre as recordações das lideranças do passado, ele afirmou,
A gente sabe que depois da Guerra do Paraguai as coisas foram melhorando aqui no Cocal. O chefe que a gente conheceu foi José Tomás das Flores. Ele dava ordens para o povo brincar no Toré. Era o nosso chefe, o nosso capitão. Ele se referia muito ao Capitão Salazar. Depois, eu ficando grande, recebi do meu pai com 12 anos a ordem de continuar como chefe do Cocal. Sou o representante lá fora. Aqui no Cocal eu sou o ‘inspetor’ até hoje. Quando o delegado quer resolver alguma coisa com os índios do Cocal, me chama e eu represento a turma toda. E eu tenho até hoje a espada do Capitão José Tomaz Marques das Flores que é uma herança minha, da minha família e de todos os índios do Cocal. [19]
Nas pesquisas que realizou em 1979 para o levantamento fundiário na área indígena, antropóloga a serviço da FUNAI Delvair Montagner Melatti, escreveu em seu relatório o que ouviu dos índios,
Os caboclos narraram que D. Pedro II, dou quatro legas em quadro (uma sesmaria), ao Capitão Salazar de Souza, por terem participado na Guerra do Paraguai. Como estava havendo dificuldade em recrutar brasileiros para lutarem na Guerra, o Capitão Salazar, ofereceu alguns índios para participarem dela. Então, 12 (doze) índios entre homens e mulheres foram para o Paraguai. Dentre eles, citaram o Lava-Pé, o Lindóia, as índias Juruta e Cambonja. O sogro do Paulo ainda tem guardado a espada e a estrela que usou durante a Guerra do Paraguai.
O título das terras o Imperador deu ao capitão Salazar. O avô do caboclo Paulo, enviou os índios Camilo Bezouro e Francisco Luiz de Ó à cidade de Passo de Camaragibe entregar o documento ao Dr. Uchoa de Mendonça, dono do Cartório. Este também era dono do Engenho Mirim[20].
Nos relatos ainda a antropóloga ouviu que o citado documento nunca foi dado entrada no Cartório e desapareceu. Os índios informavam que ele estava em poder de uma invasora, a matriarca da Família Mendonça, dona de um dos muitos engenhos instalados na área indígena.
Com os permanentes conflitos e diante das ameaças dos posseiros invasores desalojarem da parte de suas terras onde viviam os Wassú irão sempre recorrer à memória para reafirmarem seus direitos. Assim em 1981, a reportagem intitulada “Índios Wassú estão em ‘Pé de guerra’”, publicada pelo jornal Gazeta de Alagoas citava que o Cacique José Manuel de Souza afirmava que as terras “a eles foi doada por D.Pedro II, através do Capitão Salazar. A doação, segundo explicou foi uma recompensa pela bravura de guerreiros da tribo que foram lutar na Guerra do Paraguai”.[21]
Faz-se necessário entender os significados que os atuais indígenas no Nordeste dão à participação de seus antepassados na Guerra do Paraguai. Sabe-se que finda a Guerra o Governo Imperial, como “recompensa”, destinou além de honrarias militares, lotes de terras aos ex-combatentes. Quais leituras sobre essas “recompensas” que seus antepassados receberam por participarem na Guerra, fazem os índios que desde o último quartel do século XIX, acentuadamente após a Lei de Terra de 1850, enfrentam conflitos com tradicionais posseiros invasores das terras indígenas? Os Wassú assim como outros povos indígena no Nordeste, a exemplo do Xukuru do Ororubá e dos Fulni-ô em suas leituras estabelecem uma relação direta entre memórias, história e direito a suas terras.
O pesquisador francês Michael Pollak, ao discutir as relações entre memória e identidade social, afirmou ser perfeitamente possível que “por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase herdada” (Pollak, 1992:4).
A partir dos relatos Wassú acima, é possível entender das leituras que os indígenas fazem sobre a participação de seus antepassados na Guerra do Paraguai, dentre outros prováveis significados, que eles lhes deixaram como herança da vitória da Guerra. Uma conquista transmudada também em uma certeza da vitória na guerra em muitas batalhas por suas terras, pela reivindicação e reconhecimento de seus direitos históricos, que lhes garante o futuro. Apoiados na memória e a história que compartilham sobre o passado, da releitura que fazem de acontecimentos que escolheram como importantes, os atuais Wassú constroem e reconstroem sua identidade para afirmarem seus direitos enquanto um povo indígena.
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*Doutorando em História/UNICAMP. Mestre em História pela UFPE. Leciona História no CENTRO DE EDUCAÇÃO-Col. de Aplicação/UFPE. Membro do Laboratório de Estudos de Movimentos Étnicos-LEME/UFCampinaGrande.E-mail:edson.edsilva@gmail.com /ororuba@universia.com.br
NOTAS:
[1]O citado documento encontra-se transcrito no livro inédito Tribo Wassú: os caboclos de Cocal, de autoria do Prof. Clóvis Antunes (Antunes, 1985, p.12). Sou imensamente grato ao autor que generosamente me cedeu fotocópia dos originais do livro que se encontra no prelo.
[2]In Antunes, 1995, op. cit. p.17.
[3]Idem, p.20.
[4]Transcrito in Antunes, 1985, p.38.
[5]Ofício do Diretor Geral dos Índios de Alagoas, em Maceió 30/08/1866. In, ANTUNES, Clóvis. Índios de Alagoas: documentário. Maceió, Edufal, 1984, p.140-141.
[6]Of. do Diretor Geral dos Índios de Alagoas, em Maceió 28/09/1866. In, ANTUNES, op. cit. p.142.
[7]Of. de Felis Fridirico Soares de Albuquerque Baiano, a rogo de Antonio Joaquim de Souza Salazar, em 12/01/1860. In Antunes, 1985, p.26-27.
[8]Ofício de Jacintho Paes de Mendonça Junior, Diretor dos Índios de Cocal, em Engenho Carrilho 11/07/1850. In Antunes, 1985, p.22-23.
[9]Of. do Subdelegado do Distrito de Soledade, em 25/07/1864. In, Antunes, p.22-23.
[10]Of. do Diretor Geral dos Índios ao Pres. da Província de Alagoas em 1864. In, Antunes, p.25.
[11]Of. do Diretor Geral dos Índios ao Pres. da Província de Alagoas em 1864. In, Antunes, p.27
[12]In, Pereira, 2005, p.7.
[13]In, Antunes, 1985, p. 6-7.
[14]In idem, p.6.
[15]Citado em Antunes, 1985, p.10.
[16]In Antunes, 1985, p.10.
[17]Trecho de depoimento de Malaquias Figueira Ramos, 62 anos, em 12/11/1996, Aldeia Caípe, Terra Indígena Xukuru do Ororubá, Pesqueira/PE.
[18]In Antunes, 1985, p.10.
[19]In Antunes, 1985, p. 30-31.
[20]In, Antunes, p. 32.
[21]In Antunes, 1985, p.50.
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2 comentários:
Por favor, estou fazendo meu tcc sobre os índios Wassu-Cocal, necessito do email do professor Clóvis Antunes, pois desejo realizar uma entrevista com o mesmo. Caso você o tenha, por gentiliza, repasse se possível.
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