Sei que estou insistindo muito neste tema, mas é uma quetão grave o que o governo Lula está querendo fazer para ajudar seus amigos empreiteiros.
“Dizer que transposição resolve problema da água é mentira” (Entrevista Henrique Cortez - Articulação no Semi-Árido Brasileiro) Agência Carta Maior22/12/2004
ESPECIAL SÃO FRANCISCO
Para o consultor da Articulação no Semi-Árido (ASA), Henrique Cortez, este projeto de transposição do São Francisco não garantirá o acesso à água àqueles que tanto precisam do recurso. Nesta entrevista, ele afirma que o governo Lula sabe disso e mesmo assim insiste na idéia. Bia Barbosa 22/12/2004 Recife – A Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA) é uma rede de mais de 800 organizações da sociedade civil – entre sindicatos de trabalhadores rurais, associações de agricultores, cooperativas de produção, igrejas católicas e evangélicas e ONGs ambientalistas – que trabalham pelo desenvolvimento social, econômicos, político e cultural de uma das regiões mais excluídas do país. Criada em Recife em 1999, durante o Fórum Paralelo à Conferência de Combate à Desertificação e à Seca, a ASA vem se consolidando como um espaço coletivo de centenas de experiências de uma grande parcela da população brasileira que luta todos os dias por um semi-árido justo e igualitário. Deixando de lado o falso discurso de combate à seca, a articulação atua na proposição e implementação de políticas públicas que promovam a convivência com as condições climáticas locais para garantirem o desenvolvimento sustentável nos onze Estados que englobam a região. Um dos principais projetos da ASA é o P1MC – Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semi-Árido: Um Milhão de Cisternas Rurais. O programa tem como meta construir, em cinco anos, um milhão de cisternas de placas na região, que proporcionarão água limpa e de qualidade para cinco milhões de pessoas. Em pouco mais de um ano, o P1MC construiu 50 mil cisternas, que já beneficiam 260 mil pessoas, e possibilitou o aumento da frequência escolar, a diminuição do número de pessoas com doenças em virtude do consumo de água contaminada e a geração de emprego e renda para os morados das comunidades onde as cisternas foram construídas. É nessa linha de convivência – e não combate – com o semi-árido que as organizações que integram a articulação têm se posicionado fortemente contra o projeto governamental de transposição do rio São Francisco. Na última série de reportagens especiais da Agência Carta Maior sobre o tema, uma entrevista com Henrique Cortez, jornalista, engenheiro, ambientalista e consultor da ASA, acerca desta polêmica, concedida durante o Fórum Social Nordestino, realizado no último mês em Recife. Nesta boa conversa, Cortez explica porque é inviável fazer a transposição do Velho Chico antes de sua revitalização, os interesses que estão por trás de quem banca do projeto dentro do governo e qual seria a chance de barrar essa transposição tão questionada por aqueles que têm sede e que, na teoria, seriam os mais interessados em receber as águas do São Francisco.
CM - A ASA defende, antes da transposição, a revitalização do São Francisco. Ideologicamente você é contra a transposição?
Henrique Cortez – É uma história complicada. Transposição significa tirar água de uma bacia hidrográfica e levar para outra. É uma tecnologia de mais de 100 anos, o mundo inteiro faz isso. A cidade de São Paulo recebe água de transposição do rio Piracicaba. A cidade do Rio de Janeiro idem. Existem casos de transposição excelentes e existem desastres. O problema não está na transposição, mas na concepção técnica e na realização da transposição. Tecnicamente falando, como engenheiro, eu diria que é muito simples. Ideologicamente, como ambientalista, também sei que é perfeitamente possível fazer isso de forma responsável, com danos ambientais facilmente mitigáveis, sem grandes dramas. Uma barragem causa muito mais estrago. A questão não está nisto. A questão é que os três temas mais relevantes não estão sendo atendidos neste projeto – que é o mesmo projeto do governo anterior (as mudanças são mínimas) e que não deve ter sido muito diferente do projeto do D. Pedro II, de 1847. O primeiro deles é a revitalização do São Francisco. Não existe banco de sangue que aceite doação de doador anêmico. O rio está morrendo. O mar já entrou 50 km dentro do rio, já se pesca robalo, que é um peixe exclusivamente de água salgada, a 50 km da foz. Mas a revitalização é algo complicado, é demorado. Precisa de um grande pacto nacional. Primeiro, recuperar os mananciais, os olhos d’água, as nascentes, fazer a revegetação – são mais de dois bilhões de mudas de árvores a serem recuperadas, milhões de hectares –, acertar a questão fundiária de quem está hoje instalado na área de preservação permanente, a menos de 30 metros do rio. Tem que ter um processo. Na bacia do São Francisco são 450 cidades que não tem saneamento básico. Quem é que faz esse trabalho? O reservatório de Sobradinho é um imenso tanque de decantação. Ele é a estação de tratamento de esgoto da bacia. O primeiro problema é recuperar o rio, tratar, ordenar as outorgas, fazer com que as pessoas não peguem água no meio do dia com um poço, com um cano de duas polegadas e um motor de 3 hp com um pivô central jogando água na atmosfera. A outorga é uma autorização para a captação de água. Tudo que se refere a poços não requer outorgas, porque, pela legislação, o poço é o que se chama de captação insignificante, não causa um impacto no volume da disponibilidade hídrica da região onde se encontra. Agora, se você vai fazer um poço artesiano ou um poço de águas profundas, onde há bombeamento, você precisa de outorga. Se você vai retirar um pouco de água de um córrego, precisa de água. E por aí vai. Num reservatório é a mesma coisa. Acontece que, no Brasil, para cada outorga, para cada sujeito que está com um cano enfiado no rio tirando água, há 100 captações sem outorgas, ou seja, retirada ilegal. É por isso que a conta não fecha. Mas ninguém está falando em revitalização, que é algo complicado e caro, é um projeto de longo prazo. Não é “do” governo; tem que ser “de” governo.
CM - É impossível fazer a transposição antes disso?
HC – O rio não agüenta, não tem capacidade de suporte. Foi autorizada a transposição de 26 metros cúbicos/s porque é o que sobra. Os resto dos 360 já está outorgado. O Ministério da Integração Nacional fala que o projeto só vai usar 1% da capacidade do rio. Mas este é um jogo de números. É muito mais simples para as pessoas entenderem que é 1%. Só que 26 metros sobre 360 são 7%. Na verdade, o projeto é de 127 metros cúbicos/s, não de 26. Mas há uma diferença entre vazão máxima autorizada e vazão mínima autorizada. A vazão máxima é de 127 metros, a mínima é de 26, porque não dá para tirar mais. Se um dia os reservatórios sangrarem, aí pode chegar a até 127 metros por segundo. Mas aí está a primeira bobagem. Se o Sobradinho, por exemplo, sangrar, é porque o regime de chuva do semi-árido está extremamente intenso. Se for profundamente intenso, vai se repetir o que aconteceu este ano. Não só Sobradinho encheu. Castanhão encheu, Armando Ribeiro encheu, os grandes reservatórios encheram. Então você está transpondo o que pra onde, se os reservatórios estão cheios? O problema todo é de acesso à água.
CM - Este é o segundo problema?
HC – Exatamente. A capacidade de armazenamento dos reservatórios do nordeste brasileiro é de 37 bilhões de metros cúbicos de água. Teoricamente, a água já existe. O problema é que ela foi mal gerenciada, mal tratada. Veja a questão da evaporação no semi-árido. Em tese, um reservatório que tem, por exemplo, 2 bilhões e 400 milhões de metros cúbicos de água, em condições normais de temperatura e pressão, mesmo que não chova 5 anos, dado o número de outorgas concedidas, deveria durar dez anos. Ele seca em dois. Num reservatório, é preciso quatro litros de água para que nós possamos usar um; três litros irão evaporar. No Brasil, a evaporação no semi-árido é três vezes maior do que a precipitação. Por isso que em países como a África do Sul o açude tem uma tampa. Pra diminuir a evaporação. Se o sistema não for aperfeiçoado, você pode jogar água à vontade que ele evapora. O problema do nordeste não é fome, é água. Se tem água você produz alguma coisa. Mas muitas vezes você tem a comunidade na beira do rio recebendo água de carro pipa. Às vezes há uma linda área verde, produzindo melão, e uma cerca. Depois da cerca você anda quilômetros só vendo as casinhas de taipa e nada. Então o problema é o acesso a água. E isso pressupõe, primeiro, capital, investimento, e supõe direitos de cidadania e regularização fundiária. Fazer transposição não resolve o acesso a água porque o projeto vai levar a água basicamente para os reservatórios. E os grandes reservatórios ou atendem a áreas urbanas ou a produção irrigada. E a produção irrigada não é do seu Zezinho nem da dona Mariazinha.
CM - Mas se isso já é sabido, por que se está trabalhando com o mesmo projeto? Como é que se cai no “conto do vigário” de que o projeto vai levar água para quem não tem?
HC – Esse é o discurso. “Vamos levar água para quem tem sede”. Estão trabalhando com o mesmo projeto porque é rápido, tem efeito pirotécnico, dá discurso, dá palanque, tem placa. Como é que você inaugura um projeto de revegetação? Como é que você põe placa em 50 mil mudinhas? Essa é a razão. É uma obra simples de fazer e rápida. São três transposições diferentes em cascata. Primeiro, a do São Francisco; daqui de três a cinco anos, a transposição do Tocantins para o São Francisco; e daqui a dez anos a transposição do Tocantins para o Parnaíba, que é mais fácil ainda de fazer porque são 90km de distância de um para o outro. O problema é que o Tocantins é um rio amazônico, com um regime de chuvas de monção: seis meses com muita chuva e seis meses sem água. Por sorte, o período de cheia do Tocantins coincide com o período de seca do nordeste. Mas é um bioma diferente. Transpor água do São Francisco para o semi-árido não altera o bioma, é a caatinga. Mas transpor do Tocantins para o São Francisco são biomas diferentes. E aí você vai migrar a característica biológica de um rio que a natureza tomou o cuidado de separar para outro. É um processo de bioinvasão. Você vai ter elementos de um bioma sendo instalados em outro. E ninguém sabe o que vai acontecer.
CM - Qual o terceiro problema?
HC – A terceira questão é o modelo de desenvolvimento, um problema que o Brasil tangencia. Nesse modelo de desenvolvimento há dois componentes que têm que ser pensados. Primeiro, este é o modelo do agronegócio exportador. Este é um projeto feito para o agronegócio exportador. A transposição do Tocantins para o São Francisco leva água para o oeste da bacia, que é a nova fronteira de expansão do agronegócio na Bahia. E levar do Tocantins para o Parnaíba é levar exatamente para a nova fronteira de expansão do cerrado. É uma questão antiga e inquestionável: construir toda uma estrutura complicadíssima de gestão, com problemas seríssimos, para atender, de verdade, os problemas do agronegócio exportador. Há outra situação: o problema do cerrado. Onde estão hoje as principais nascentes do São Francisco? No cerrado. Você cria um processo de transposição para levar água para o agronegócio, que está expandindo para o semi-árido, que tira água de onde você tira para levar para o agronegócio. No momento em que você avança para o cerrado, vai desmatando e esgota as nascentes. Você vai matando os olhos d’água e tirando a capacidade de recarga da bacia do São Francisco. É um projeto do rabo abanando o cachorro. Então há uma série de questões de acesso à água, de cidadania, de regularização fundiária, de manejo dos recursos dos açudes, a questão das outorgas... são questões muito ligadas às necessidades da população do semi-árido não estão sendo contempladas neste projeto. Então é um megaprojeto, vai beneficiar as empreiteiras, vai levar água pra quem já tem e as questões mais importantes não estão na discussão. Portanto, eu sou contra este projeto de transposição no seu conteúdo técnico, social e pela sua irresponsabilidade de gestão de modelo de desenvolvimento. Esse projeto é um equívoco do começo ao fim.
CM - Mas pode existir um projeto de transposição que seja tecnicamente e socialmente correto do São Francisco?
HC – Claro, de qualquer bacia. Como? Revitaliza o São Francisco. São 30 anos trabalhando sério. Aí você voltou para os 2800 metros cúbicos/s e não mais para 1800. Vamos chegar na cota máxima do rio em 30 anos. Saneamento, reflorestamento, manejo de água, uso sustentável, combate ao desperdício, todo mundo usando cisterna. Em 30 anos o rio está recuperado. Aí dá para transpor. Além disso, é preciso tomar a decisão sobre o acesso a água. Eu posso levar para os reservatórios, mas é preciso criar um mecanismo que permita que o seu Zezinho e a dona Mariazinha, que não têm outorga, não têm terra, que não têm posse, nada, tenham acesso a água. Não é complicado de fazer, nem é caro.
CM - Mas depender regularização fundiária para fazer a transposição do rio é algo complicado... HC – Então por que o governo está querendo a transposição? Porque ele tangencia os problemas. É a famosa resposta sem pergunta. É um palanque muito interessante. As empreiteiras vão ficar felizes, etc. Porque fazer a revitalização, plantar árvores, fazer coleta de sementes, transportar a planta é algo que a população faz, e não a empreiteira. Se formos incompetentes, a revitalização do São Francisco gera um milhão de empregos para essa população. É um monte de gente envolvida. O cálculo correto é de uma pessoa por hectare revitalizado. Se estamos falando de dois milhões de hectares, o cálculo é de dois milhões de empregos. Se formos muito incapazes, um milhão. Então qual o problema em fazer a revitalização?
CM - Por que pessoas como Antônio Carlos Magalhães estão contra o projeto?
HC – Eu nunca imaginei estar do mesmo lado que Antônio Carlos Magalhães. Estou fazendo até terapia por causa disso... (risos). Só dispensei o terapeuta porque nós não estamos falando a mesma coisa. O discurso do Antônio Carlos Magalhães é: pode transpor desde que traga água do Tocantins pra Bahia. Porque o rio Sono é justamente na junção com o oeste baiano, que é exatamente na nova fronteira do agronegócio baiano. Quem está em Petrolina é contrário porque, lá, o que se produz é de exportação ou de consumo no sul e sudeste. Se você tem condições de expandir com a transposição – que vai garantir que o reservatório do Castanhão (CE) nunca vai ficar com menos de 3 milhões de metros cúbicos –, pra onde avança a fronteira agrícola de exportação? Para o Rio Grande do Norte, pro Ceará. E é isso que eles estão temendo. Vão perder mercado. É óbvio.
CM - Na sua opinião ainda é possível barrar este projeto?
HC – Sinceramente? Entendo que esse projeto vai sair. Embora exista este processo de uma vontade imperial, autoritária e autocrática, até messiânica de “eu vou salvar o nordeste”, não é essa a questão. A vontade imperial poderia até sofrer num enfrentamento. Acontece que este tema não mobiliza a sociedade. As pessoas ainda têm no imaginário a imagem da seca do nordeste de 1951 a 1954. Aquela imagem da terra esturricada, de milhares de animais mortos, das pessoas se arrastando pelo sertão. Esse imaginário – e que não é um livro, porque isso aconteceu mesmo e não há muito tempo –, quando proposto para o sul ou o sudeste – onde está a maioria da população, os jornais formadores de opiniões, o poder econômico, as grandes decisões –, quando alguém diz “eu tenho um projeto que é polêmico, mas que vai salvar o nordeste e vai levar água a quem tem sede e que, com isso, aquela imagem migrante completamente desgraçado não vai se repetir, as pessoas dizem “tá valendo”. O bem maior justifica. Os fins justificam os meios. O interesse do todo supera qualquer interesse individual. É um jogo de imaginário, um jogo muito perverso.
CM - O que há existe de acerto do ponto de vista político?
HC – A questão já está resolvida, o dinheiro já está empenhado. Não saiu a licitação ainda mas a empreiteira já está contratada. Essa parte burocrática já está resolvida. E vai sair porque é muito mais fácil fazer a transposição do que a revitalização. Segundo, porque é engenharia, dinheiro e empreiteira. E você vai levar a água pra quem já tem poder e interesse econômico, que é o agronegócio exportador. Então é ação entre amigos. E eles estão carecas de fazer isso. Não dá pra mudar porque o trem já está andando. E a experiência de movimento social demonstra que, embora você possa ter movimentos resistentes no país inteiro, a canoa só vira quando se consegue a adesão dos movimentos sociais do sul e do sudeste – essa história é verdadeira desde a proclamação da República. Então criou-se um negócio muito perverso por estar-se lidando com o imaginário: criou-se uma secção do país. Este lado de baixo, que tem energia e demanda pra fazer pressão, vai pagar a conta, mas não vai participar do processo não vai participar do processo, porque esses movimentos refluem na medida em que não têm contato com o semi-árido.
CM - Em quantos anos o processo termina? O governo Lula ainda corre o risco dele próprio pagar por este erro que está cometendo?
HC – Em um ano e meio você põe a obra funcionando. Fecha o primeiro ciclo da transposição, que é o eixo norte, em três anos. Em cinco anos você percebe se aquilo deu certo ou não. Toda grande decisão tem este preço.
CM - Pela sua linha de raciocínio, o Ministério da Integração Nacional sabe exatamente o que está fazendo e os interesses de quem está atendendo. O presidente Lula também?
HC – Me preocupa muito o argumento usado pelo Lula de que o projeto é para levar água para quem tem sede. A partir dessa abordagem, a mentira ficou evidente. “Vamos levar água para expandir a capacidade econômica do nordeste”. Ok, o argumento é verdadeiro. Se é justo, essa é outra discussão; mas é verdadeiro. Agora, levar água a quem tem sede, não. Eu tenho a clara impressão de que o presidente Lula é um homem – a história dele mostra isso – extremamente sensível e inteligente. Capaz e extremamente perceptível. Então não acredito que ele esteja inocente nessa história.
CM - Então não há como alterar este projeto definitivamente?
HC – Só tem um componente complicado nessa história. Pela primeira vez na história do Brasil desde a Guerra do Contestado e da Revolução Farroupilha existe uma crise federativa no país. Você tem os Estados doadores da bacia (MG, BA, PE, AL e SE) terminantemente contra e os Estados receptores (PB, RN e CE) a favor. No Nordeste, é a primeira vez que eu ouço falar que tem um Estado que está falando uma coisa que não é a mesma que o outro.
CM - E como fica isso num projeto que tem como ministro uma pessoa eleita pelo Ceará (Ciro Gomes)?
HC – São 26 metros cúbicos que serão transportados. Cinco metros cúbicos irão para o RN e PB; 21 irão para o CE, para o Castanhão, que é o maior açude do Brasil. Vai chover na horta de quem?
CM - Como resolver esta crise federativa?
HC – Levar a discussão para o Senado. Lá o agronegócio não domina. O Senado é dominado pelo segmento industrial ou pelo grande interesse econômico. E esse não está gostando dessa brincadeira, porque vai pagar a conta. Porque quando se reduzir 1% da energia elétrica para a transposição – e o rio São Francisco responde por 95% da energia do nordeste – a energia vai ter que ser composta. E não se pode trazer a energia de Itaipu para o nordeste; você vai ter que colocar termelétrica aqui. E as termelétricas entram na cláusula de energia emergencial, ou seja, na conta de todo mundo. Portanto, aquele gaúcho de Santana do Livramento vai pagar a conta também. Só que as indústrias não vão querer pagar essa conta. O problema é que este debate no Senado só vai acontecer depois que a obra começar, porque o legislativo não tem força para impedir nada porque não há especificidade na legislação brasileira que diga que isso tem que ser discutido no Congresso. Isso é obra do executivo. Mas, depois, o Senado pode interromper e embargar a obra por causa da crise federativa através de um decreto legislativo. Este é o único lugar em que o projeto de transposição está vulnerável, porque as bancadas do sul e do sudeste não querem. O cara pode ser do PMDB e ter um cargo no ministério, mas na hora em que o patrão dele, da Fiesp, disser “eu não vou pagar a conta dessa energia elétrica maluca”, ele assina embaixo. Agora isso só vai acontecer quando a crise for instalada. E isso ainda não existe.
CM - Aí pode ser tarde demais?
HC – Se isso acontecer, a obra já vai estar na metade. Vai ser no final do período legislativo de 2005, entre outubro e novembro. Isso não acontece antes porque a questão não é salvar a pátria. É salvar a pátria “de quem”. E quem fez essa bobagem? Ciro Gomes? Não. Lula. “Um irresponsável, que não tem capacidade de dirigir um país como esse”. É isso que vamos ouvir. Eu não acredito que ele seja inocente. Entretanto, existem outros movimentos de subterrâneo que estão chocando o ovo da serpente. Onde é que o presidente está embarcando no erro? No timing. Na visão do Lula, ele começa a obra em 2005 e vai começar a pingar água de 2006 pra 2007. O Lula está apoiando o projeto porque ele acha que essas coisas vão andar em curso, o que não é verdade
Como vocês podem ver, a transposição do Rio São francisco é uma balela! Protestem!!!
“Dizer que transposição resolve problema da água é mentira” (Entrevista Henrique Cortez - Articulação no Semi-Árido Brasileiro) Agência Carta Maior22/12/2004
ESPECIAL SÃO FRANCISCO
Para o consultor da Articulação no Semi-Árido (ASA), Henrique Cortez, este projeto de transposição do São Francisco não garantirá o acesso à água àqueles que tanto precisam do recurso. Nesta entrevista, ele afirma que o governo Lula sabe disso e mesmo assim insiste na idéia. Bia Barbosa 22/12/2004 Recife – A Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA) é uma rede de mais de 800 organizações da sociedade civil – entre sindicatos de trabalhadores rurais, associações de agricultores, cooperativas de produção, igrejas católicas e evangélicas e ONGs ambientalistas – que trabalham pelo desenvolvimento social, econômicos, político e cultural de uma das regiões mais excluídas do país. Criada em Recife em 1999, durante o Fórum Paralelo à Conferência de Combate à Desertificação e à Seca, a ASA vem se consolidando como um espaço coletivo de centenas de experiências de uma grande parcela da população brasileira que luta todos os dias por um semi-árido justo e igualitário. Deixando de lado o falso discurso de combate à seca, a articulação atua na proposição e implementação de políticas públicas que promovam a convivência com as condições climáticas locais para garantirem o desenvolvimento sustentável nos onze Estados que englobam a região. Um dos principais projetos da ASA é o P1MC – Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semi-Árido: Um Milhão de Cisternas Rurais. O programa tem como meta construir, em cinco anos, um milhão de cisternas de placas na região, que proporcionarão água limpa e de qualidade para cinco milhões de pessoas. Em pouco mais de um ano, o P1MC construiu 50 mil cisternas, que já beneficiam 260 mil pessoas, e possibilitou o aumento da frequência escolar, a diminuição do número de pessoas com doenças em virtude do consumo de água contaminada e a geração de emprego e renda para os morados das comunidades onde as cisternas foram construídas. É nessa linha de convivência – e não combate – com o semi-árido que as organizações que integram a articulação têm se posicionado fortemente contra o projeto governamental de transposição do rio São Francisco. Na última série de reportagens especiais da Agência Carta Maior sobre o tema, uma entrevista com Henrique Cortez, jornalista, engenheiro, ambientalista e consultor da ASA, acerca desta polêmica, concedida durante o Fórum Social Nordestino, realizado no último mês em Recife. Nesta boa conversa, Cortez explica porque é inviável fazer a transposição do Velho Chico antes de sua revitalização, os interesses que estão por trás de quem banca do projeto dentro do governo e qual seria a chance de barrar essa transposição tão questionada por aqueles que têm sede e que, na teoria, seriam os mais interessados em receber as águas do São Francisco.
CM - A ASA defende, antes da transposição, a revitalização do São Francisco. Ideologicamente você é contra a transposição?
Henrique Cortez – É uma história complicada. Transposição significa tirar água de uma bacia hidrográfica e levar para outra. É uma tecnologia de mais de 100 anos, o mundo inteiro faz isso. A cidade de São Paulo recebe água de transposição do rio Piracicaba. A cidade do Rio de Janeiro idem. Existem casos de transposição excelentes e existem desastres. O problema não está na transposição, mas na concepção técnica e na realização da transposição. Tecnicamente falando, como engenheiro, eu diria que é muito simples. Ideologicamente, como ambientalista, também sei que é perfeitamente possível fazer isso de forma responsável, com danos ambientais facilmente mitigáveis, sem grandes dramas. Uma barragem causa muito mais estrago. A questão não está nisto. A questão é que os três temas mais relevantes não estão sendo atendidos neste projeto – que é o mesmo projeto do governo anterior (as mudanças são mínimas) e que não deve ter sido muito diferente do projeto do D. Pedro II, de 1847. O primeiro deles é a revitalização do São Francisco. Não existe banco de sangue que aceite doação de doador anêmico. O rio está morrendo. O mar já entrou 50 km dentro do rio, já se pesca robalo, que é um peixe exclusivamente de água salgada, a 50 km da foz. Mas a revitalização é algo complicado, é demorado. Precisa de um grande pacto nacional. Primeiro, recuperar os mananciais, os olhos d’água, as nascentes, fazer a revegetação – são mais de dois bilhões de mudas de árvores a serem recuperadas, milhões de hectares –, acertar a questão fundiária de quem está hoje instalado na área de preservação permanente, a menos de 30 metros do rio. Tem que ter um processo. Na bacia do São Francisco são 450 cidades que não tem saneamento básico. Quem é que faz esse trabalho? O reservatório de Sobradinho é um imenso tanque de decantação. Ele é a estação de tratamento de esgoto da bacia. O primeiro problema é recuperar o rio, tratar, ordenar as outorgas, fazer com que as pessoas não peguem água no meio do dia com um poço, com um cano de duas polegadas e um motor de 3 hp com um pivô central jogando água na atmosfera. A outorga é uma autorização para a captação de água. Tudo que se refere a poços não requer outorgas, porque, pela legislação, o poço é o que se chama de captação insignificante, não causa um impacto no volume da disponibilidade hídrica da região onde se encontra. Agora, se você vai fazer um poço artesiano ou um poço de águas profundas, onde há bombeamento, você precisa de outorga. Se você vai retirar um pouco de água de um córrego, precisa de água. E por aí vai. Num reservatório é a mesma coisa. Acontece que, no Brasil, para cada outorga, para cada sujeito que está com um cano enfiado no rio tirando água, há 100 captações sem outorgas, ou seja, retirada ilegal. É por isso que a conta não fecha. Mas ninguém está falando em revitalização, que é algo complicado e caro, é um projeto de longo prazo. Não é “do” governo; tem que ser “de” governo.
CM - É impossível fazer a transposição antes disso?
HC – O rio não agüenta, não tem capacidade de suporte. Foi autorizada a transposição de 26 metros cúbicos/s porque é o que sobra. Os resto dos 360 já está outorgado. O Ministério da Integração Nacional fala que o projeto só vai usar 1% da capacidade do rio. Mas este é um jogo de números. É muito mais simples para as pessoas entenderem que é 1%. Só que 26 metros sobre 360 são 7%. Na verdade, o projeto é de 127 metros cúbicos/s, não de 26. Mas há uma diferença entre vazão máxima autorizada e vazão mínima autorizada. A vazão máxima é de 127 metros, a mínima é de 26, porque não dá para tirar mais. Se um dia os reservatórios sangrarem, aí pode chegar a até 127 metros por segundo. Mas aí está a primeira bobagem. Se o Sobradinho, por exemplo, sangrar, é porque o regime de chuva do semi-árido está extremamente intenso. Se for profundamente intenso, vai se repetir o que aconteceu este ano. Não só Sobradinho encheu. Castanhão encheu, Armando Ribeiro encheu, os grandes reservatórios encheram. Então você está transpondo o que pra onde, se os reservatórios estão cheios? O problema todo é de acesso à água.
CM - Este é o segundo problema?
HC – Exatamente. A capacidade de armazenamento dos reservatórios do nordeste brasileiro é de 37 bilhões de metros cúbicos de água. Teoricamente, a água já existe. O problema é que ela foi mal gerenciada, mal tratada. Veja a questão da evaporação no semi-árido. Em tese, um reservatório que tem, por exemplo, 2 bilhões e 400 milhões de metros cúbicos de água, em condições normais de temperatura e pressão, mesmo que não chova 5 anos, dado o número de outorgas concedidas, deveria durar dez anos. Ele seca em dois. Num reservatório, é preciso quatro litros de água para que nós possamos usar um; três litros irão evaporar. No Brasil, a evaporação no semi-árido é três vezes maior do que a precipitação. Por isso que em países como a África do Sul o açude tem uma tampa. Pra diminuir a evaporação. Se o sistema não for aperfeiçoado, você pode jogar água à vontade que ele evapora. O problema do nordeste não é fome, é água. Se tem água você produz alguma coisa. Mas muitas vezes você tem a comunidade na beira do rio recebendo água de carro pipa. Às vezes há uma linda área verde, produzindo melão, e uma cerca. Depois da cerca você anda quilômetros só vendo as casinhas de taipa e nada. Então o problema é o acesso a água. E isso pressupõe, primeiro, capital, investimento, e supõe direitos de cidadania e regularização fundiária. Fazer transposição não resolve o acesso a água porque o projeto vai levar a água basicamente para os reservatórios. E os grandes reservatórios ou atendem a áreas urbanas ou a produção irrigada. E a produção irrigada não é do seu Zezinho nem da dona Mariazinha.
CM - Mas se isso já é sabido, por que se está trabalhando com o mesmo projeto? Como é que se cai no “conto do vigário” de que o projeto vai levar água para quem não tem?
HC – Esse é o discurso. “Vamos levar água para quem tem sede”. Estão trabalhando com o mesmo projeto porque é rápido, tem efeito pirotécnico, dá discurso, dá palanque, tem placa. Como é que você inaugura um projeto de revegetação? Como é que você põe placa em 50 mil mudinhas? Essa é a razão. É uma obra simples de fazer e rápida. São três transposições diferentes em cascata. Primeiro, a do São Francisco; daqui de três a cinco anos, a transposição do Tocantins para o São Francisco; e daqui a dez anos a transposição do Tocantins para o Parnaíba, que é mais fácil ainda de fazer porque são 90km de distância de um para o outro. O problema é que o Tocantins é um rio amazônico, com um regime de chuvas de monção: seis meses com muita chuva e seis meses sem água. Por sorte, o período de cheia do Tocantins coincide com o período de seca do nordeste. Mas é um bioma diferente. Transpor água do São Francisco para o semi-árido não altera o bioma, é a caatinga. Mas transpor do Tocantins para o São Francisco são biomas diferentes. E aí você vai migrar a característica biológica de um rio que a natureza tomou o cuidado de separar para outro. É um processo de bioinvasão. Você vai ter elementos de um bioma sendo instalados em outro. E ninguém sabe o que vai acontecer.
CM - Qual o terceiro problema?
HC – A terceira questão é o modelo de desenvolvimento, um problema que o Brasil tangencia. Nesse modelo de desenvolvimento há dois componentes que têm que ser pensados. Primeiro, este é o modelo do agronegócio exportador. Este é um projeto feito para o agronegócio exportador. A transposição do Tocantins para o São Francisco leva água para o oeste da bacia, que é a nova fronteira de expansão do agronegócio na Bahia. E levar do Tocantins para o Parnaíba é levar exatamente para a nova fronteira de expansão do cerrado. É uma questão antiga e inquestionável: construir toda uma estrutura complicadíssima de gestão, com problemas seríssimos, para atender, de verdade, os problemas do agronegócio exportador. Há outra situação: o problema do cerrado. Onde estão hoje as principais nascentes do São Francisco? No cerrado. Você cria um processo de transposição para levar água para o agronegócio, que está expandindo para o semi-árido, que tira água de onde você tira para levar para o agronegócio. No momento em que você avança para o cerrado, vai desmatando e esgota as nascentes. Você vai matando os olhos d’água e tirando a capacidade de recarga da bacia do São Francisco. É um projeto do rabo abanando o cachorro. Então há uma série de questões de acesso à água, de cidadania, de regularização fundiária, de manejo dos recursos dos açudes, a questão das outorgas... são questões muito ligadas às necessidades da população do semi-árido não estão sendo contempladas neste projeto. Então é um megaprojeto, vai beneficiar as empreiteiras, vai levar água pra quem já tem e as questões mais importantes não estão na discussão. Portanto, eu sou contra este projeto de transposição no seu conteúdo técnico, social e pela sua irresponsabilidade de gestão de modelo de desenvolvimento. Esse projeto é um equívoco do começo ao fim.
CM - Mas pode existir um projeto de transposição que seja tecnicamente e socialmente correto do São Francisco?
HC – Claro, de qualquer bacia. Como? Revitaliza o São Francisco. São 30 anos trabalhando sério. Aí você voltou para os 2800 metros cúbicos/s e não mais para 1800. Vamos chegar na cota máxima do rio em 30 anos. Saneamento, reflorestamento, manejo de água, uso sustentável, combate ao desperdício, todo mundo usando cisterna. Em 30 anos o rio está recuperado. Aí dá para transpor. Além disso, é preciso tomar a decisão sobre o acesso a água. Eu posso levar para os reservatórios, mas é preciso criar um mecanismo que permita que o seu Zezinho e a dona Mariazinha, que não têm outorga, não têm terra, que não têm posse, nada, tenham acesso a água. Não é complicado de fazer, nem é caro.
CM - Mas depender regularização fundiária para fazer a transposição do rio é algo complicado... HC – Então por que o governo está querendo a transposição? Porque ele tangencia os problemas. É a famosa resposta sem pergunta. É um palanque muito interessante. As empreiteiras vão ficar felizes, etc. Porque fazer a revitalização, plantar árvores, fazer coleta de sementes, transportar a planta é algo que a população faz, e não a empreiteira. Se formos incompetentes, a revitalização do São Francisco gera um milhão de empregos para essa população. É um monte de gente envolvida. O cálculo correto é de uma pessoa por hectare revitalizado. Se estamos falando de dois milhões de hectares, o cálculo é de dois milhões de empregos. Se formos muito incapazes, um milhão. Então qual o problema em fazer a revitalização?
CM - Por que pessoas como Antônio Carlos Magalhães estão contra o projeto?
HC – Eu nunca imaginei estar do mesmo lado que Antônio Carlos Magalhães. Estou fazendo até terapia por causa disso... (risos). Só dispensei o terapeuta porque nós não estamos falando a mesma coisa. O discurso do Antônio Carlos Magalhães é: pode transpor desde que traga água do Tocantins pra Bahia. Porque o rio Sono é justamente na junção com o oeste baiano, que é exatamente na nova fronteira do agronegócio baiano. Quem está em Petrolina é contrário porque, lá, o que se produz é de exportação ou de consumo no sul e sudeste. Se você tem condições de expandir com a transposição – que vai garantir que o reservatório do Castanhão (CE) nunca vai ficar com menos de 3 milhões de metros cúbicos –, pra onde avança a fronteira agrícola de exportação? Para o Rio Grande do Norte, pro Ceará. E é isso que eles estão temendo. Vão perder mercado. É óbvio.
CM - Na sua opinião ainda é possível barrar este projeto?
HC – Sinceramente? Entendo que esse projeto vai sair. Embora exista este processo de uma vontade imperial, autoritária e autocrática, até messiânica de “eu vou salvar o nordeste”, não é essa a questão. A vontade imperial poderia até sofrer num enfrentamento. Acontece que este tema não mobiliza a sociedade. As pessoas ainda têm no imaginário a imagem da seca do nordeste de 1951 a 1954. Aquela imagem da terra esturricada, de milhares de animais mortos, das pessoas se arrastando pelo sertão. Esse imaginário – e que não é um livro, porque isso aconteceu mesmo e não há muito tempo –, quando proposto para o sul ou o sudeste – onde está a maioria da população, os jornais formadores de opiniões, o poder econômico, as grandes decisões –, quando alguém diz “eu tenho um projeto que é polêmico, mas que vai salvar o nordeste e vai levar água a quem tem sede e que, com isso, aquela imagem migrante completamente desgraçado não vai se repetir, as pessoas dizem “tá valendo”. O bem maior justifica. Os fins justificam os meios. O interesse do todo supera qualquer interesse individual. É um jogo de imaginário, um jogo muito perverso.
CM - O que há existe de acerto do ponto de vista político?
HC – A questão já está resolvida, o dinheiro já está empenhado. Não saiu a licitação ainda mas a empreiteira já está contratada. Essa parte burocrática já está resolvida. E vai sair porque é muito mais fácil fazer a transposição do que a revitalização. Segundo, porque é engenharia, dinheiro e empreiteira. E você vai levar a água pra quem já tem poder e interesse econômico, que é o agronegócio exportador. Então é ação entre amigos. E eles estão carecas de fazer isso. Não dá pra mudar porque o trem já está andando. E a experiência de movimento social demonstra que, embora você possa ter movimentos resistentes no país inteiro, a canoa só vira quando se consegue a adesão dos movimentos sociais do sul e do sudeste – essa história é verdadeira desde a proclamação da República. Então criou-se um negócio muito perverso por estar-se lidando com o imaginário: criou-se uma secção do país. Este lado de baixo, que tem energia e demanda pra fazer pressão, vai pagar a conta, mas não vai participar do processo não vai participar do processo, porque esses movimentos refluem na medida em que não têm contato com o semi-árido.
CM - Em quantos anos o processo termina? O governo Lula ainda corre o risco dele próprio pagar por este erro que está cometendo?
HC – Em um ano e meio você põe a obra funcionando. Fecha o primeiro ciclo da transposição, que é o eixo norte, em três anos. Em cinco anos você percebe se aquilo deu certo ou não. Toda grande decisão tem este preço.
CM - Pela sua linha de raciocínio, o Ministério da Integração Nacional sabe exatamente o que está fazendo e os interesses de quem está atendendo. O presidente Lula também?
HC – Me preocupa muito o argumento usado pelo Lula de que o projeto é para levar água para quem tem sede. A partir dessa abordagem, a mentira ficou evidente. “Vamos levar água para expandir a capacidade econômica do nordeste”. Ok, o argumento é verdadeiro. Se é justo, essa é outra discussão; mas é verdadeiro. Agora, levar água a quem tem sede, não. Eu tenho a clara impressão de que o presidente Lula é um homem – a história dele mostra isso – extremamente sensível e inteligente. Capaz e extremamente perceptível. Então não acredito que ele esteja inocente nessa história.
CM - Então não há como alterar este projeto definitivamente?
HC – Só tem um componente complicado nessa história. Pela primeira vez na história do Brasil desde a Guerra do Contestado e da Revolução Farroupilha existe uma crise federativa no país. Você tem os Estados doadores da bacia (MG, BA, PE, AL e SE) terminantemente contra e os Estados receptores (PB, RN e CE) a favor. No Nordeste, é a primeira vez que eu ouço falar que tem um Estado que está falando uma coisa que não é a mesma que o outro.
CM - E como fica isso num projeto que tem como ministro uma pessoa eleita pelo Ceará (Ciro Gomes)?
HC – São 26 metros cúbicos que serão transportados. Cinco metros cúbicos irão para o RN e PB; 21 irão para o CE, para o Castanhão, que é o maior açude do Brasil. Vai chover na horta de quem?
CM - Como resolver esta crise federativa?
HC – Levar a discussão para o Senado. Lá o agronegócio não domina. O Senado é dominado pelo segmento industrial ou pelo grande interesse econômico. E esse não está gostando dessa brincadeira, porque vai pagar a conta. Porque quando se reduzir 1% da energia elétrica para a transposição – e o rio São Francisco responde por 95% da energia do nordeste – a energia vai ter que ser composta. E não se pode trazer a energia de Itaipu para o nordeste; você vai ter que colocar termelétrica aqui. E as termelétricas entram na cláusula de energia emergencial, ou seja, na conta de todo mundo. Portanto, aquele gaúcho de Santana do Livramento vai pagar a conta também. Só que as indústrias não vão querer pagar essa conta. O problema é que este debate no Senado só vai acontecer depois que a obra começar, porque o legislativo não tem força para impedir nada porque não há especificidade na legislação brasileira que diga que isso tem que ser discutido no Congresso. Isso é obra do executivo. Mas, depois, o Senado pode interromper e embargar a obra por causa da crise federativa através de um decreto legislativo. Este é o único lugar em que o projeto de transposição está vulnerável, porque as bancadas do sul e do sudeste não querem. O cara pode ser do PMDB e ter um cargo no ministério, mas na hora em que o patrão dele, da Fiesp, disser “eu não vou pagar a conta dessa energia elétrica maluca”, ele assina embaixo. Agora isso só vai acontecer quando a crise for instalada. E isso ainda não existe.
CM - Aí pode ser tarde demais?
HC – Se isso acontecer, a obra já vai estar na metade. Vai ser no final do período legislativo de 2005, entre outubro e novembro. Isso não acontece antes porque a questão não é salvar a pátria. É salvar a pátria “de quem”. E quem fez essa bobagem? Ciro Gomes? Não. Lula. “Um irresponsável, que não tem capacidade de dirigir um país como esse”. É isso que vamos ouvir. Eu não acredito que ele seja inocente. Entretanto, existem outros movimentos de subterrâneo que estão chocando o ovo da serpente. Onde é que o presidente está embarcando no erro? No timing. Na visão do Lula, ele começa a obra em 2005 e vai começar a pingar água de 2006 pra 2007. O Lula está apoiando o projeto porque ele acha que essas coisas vão andar em curso, o que não é verdade
Como vocês podem ver, a transposição do Rio São francisco é uma balela! Protestem!!!
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