quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Monocultura da cana provoca genocídio indígena


Entrevista: Egon Heck, Assessor do Conselho Indigenis (CIMI) Mato Grosso do Sul


08.07.2008



O holocausto Guarani. 'Está em curso um processo de genocídio desse povo'.

No início, a proposta era outra. Os senhores do agronegócio pretendiam plantar cana-de-açúcar apenas nas terras degradas do Mato do Grosso do Sul. Mas, com uma perspectiva de lucro cada vez mais alto, eles mudaram de idéia e brigam agora pelas melhores terras da região, as áreas Guarani-Kaiowá. Nas localidades menos produtivas, explica Egon Heck, coordenador do Conselho Indigenista Missionário -Cimi - MS, “se consegue produzir de 70 a 80 toneladas de cana-de-açúcar por hectare. Já nas áreas Guarani-Kaiowá se produzem até 120 toneladas por hectare”. E é nessa região, enfatiza, que os fazendeiros e as multinacionais estão se instalando.

Enquanto isso, mais de 25 mil índios Guarani-Kaiowá vivem confinados em comunidades indígenas, no estado do Mato Grosso do Sul. Se não bastasse essa situação humilhante, ainda persiste o agravante de uma mentalidade adversa aos indígenas. A elite do agronegócio tem “verdadeiro ódio dos Guarani e, sem dúvida, a perspectiva dela é de que os índios não mais existissem”, revelou Heck, em entrevista, por telefone, à IHU On-Line.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a sua avaliação do estado do Mato Grosso do Sul, que está progredindo economicamente, através do plantio da monocultura de cana-de-açúcar, mas, ao mesmo tempo, tem sua população indígena morrendo de fome e desnutrição?

Egon Heck – Essa situação é dramaticamente contrastante . De um lado, se tem um dos estados de economia mais florescentes do País, baseado na monocultura de milho, na criação de gado e, agora,a monocultura da cana-de-açúcar está entrando com muita força. E, por outro lado, há muitas populações expulsas do campo, dentre elas principalmente as indígenas. Essas são as mais afetadas, pelo fato de suas terras se situarem, em geral, nas áreas mais férteis que são as de mata Atlântica, no extremo sul do estado, as terras Guarani-Kaiowá. Hoje, na região, existem mais de 20 milhões de cabeça de gado que dispõem de 3 a 5 hectares de terra por cabeça, enquanto os índios Guarani-Kaiowá não chegam a ocupar um hectare por índio. Assim, com falta de terra, centenas de sem terras indígenas são obrigados a se deslocar para a beira das estradas. Essa é uma situação calamitosa para essas populações, além de gritante em termos de injustiça para com os povos indígenas e os trabalhadores sem-terras.

IHU On-Line – Com o destaque econômico do Mato Grosso do Sul e a construção de novas usinas de açúcar, o senhor acredita que os índices de opressão entre e contra os índios tendem a aumentar?

Egon Heck – Sem dúvida, o plantio de cana-de-açúcar, que hoje está em torno de 150 mil hectares e em cinco anos chegará a 1 milhão de hectares, com a implantação de mais de 60 usinas de cana-de-açúcar, trará um agravamento muito grande para os índios Guarani-Kaiowá. Para se ter uma idéia da gravidade do que vem ocorrendo no Mato Grosso do Sul, apenas neste ano 50 índios foram assinados no Brasil. Desses, 40 moravam no estado. Então, mais de 60% dos assassinatos de índios no País acontece no Mato Grosso do Sul, e com os Guarani-Kaiowá. Esses dados têm aumentado. Os números de suicídios, por exemplo, ficam em torno de 50 a 60 por ano, e o número de crianças que morrem por desnutrição chegou a mais de 30, desde 2005. Aldeias ou campos de concentração?

Em pequenas áreas indígenas como Dourados, quase 13 mil índios dividem 3,5 mil hectares de terra. Em Amambai, 1,6 mil hectares são utilizados por 6,5 mil índios. Em Caarapó (Tey Kue), aproximadamente cinco mil índios dividem 2,4 mil hectares, e, em Porto Lindo, outros 4 mil índios convivem em 2,5 mil hectares de terra. Com o exemplo dessas quatro comunidades, pode se ter uma idéia do confinamento em que eles são submetidos. Hoje, chamamos esses locais de campos de concentração, um holocausto Guarani, onde, de fato, está em curso um processo de genocídio desse povo.

Com o exemplo dessas comunidades, pode se ter uma idéia do confinamento em que eles são submetidos. Hoje, chamamos esses locais de campos de concentração, um holocausto Guarani, onde, de fato, está em curso um processo de genocídio desse povo.

Kaiowá-Guarani: a pedra no sapato do agronegócio

Se não bastasse essa situação de confinamento, ainda há o agravante de uma mentalidade extremamente adversa aos índios. A maioria da elite do campo e do agronegócio tem verdadeiro ódio dos Guarani e, sem dúvida, a perspectiva dela é de que os índios não mais existissem. Essa posição será agravada com o plantio intensivo da monocultura de cana-de-açúcar, nesses próximos anos. Aliás, esse processo já está aceleradamente em curso, o que faz com que os índios, em primeiro lugar, se tornem vítimas do próprio trabalho escravo da cana-de-açúcar. Multinacionais e grandes usineiros já declararam sua preferência pela mão-de-obra indígena, por ser ela mais submissa ao trabalho escravo e, ao mesmo tempo, mais empenhada na própria produção.

Hoje, para que uma pessoa que trabalha com cana-de-açúcar tenha uma renda razoável de R$ 500,00 por mês, ela precisa produzir, no mínimo, 12 toneladas de cana, por dia. Esse ritmo de trabalho garante uma vida útil de 12 a 13 anos, o que é inferior inclusive à época do início da escravidão, em que os índios também foram utilizados no trabalho de usinas. Naquela ocasião, eles viviam, no trabalho, em torno de 15 a 17 anos.

Em segundo lugar, com a plantação exacerbada de cana-de-açúcar, as terras ficarão mais valorizadas. Num dos debates que realizamos na região, eu lembro que um dos fazendeiros do agronegócio chamou a atenção para o fato de que a rentabilidade na cana-de-açúcar seria até 12 vezes mais do que, por exemplo, o mesmo número de hectares ocupados por gado. Hoje, os fazendeiros cobram o dobro no arrendamento de um hectare de terra utilizada para o plantio de cana-de-açúcar, referente ao mesmo espaço que arrendam para a plantação de soja. Realmente, isso desencadeia uma corrida frenética em direção às melhores terras. Quanto a isso, faço outra observação: falava-se muito que a cana-de-açúcar iria ocupar as áreas degradadas, no estado. Áreas degradadas nada! Nessas terras, se consegue produzir de 70 a 80 toneladas por hectare. Já nas áreas Guarani-Kaiowá, nas melhores terras, se produzem até 120 toneladas de cana-de-açúcar por hectare. E é nessa região que os fazendeiros, senhores do agronegócio e multinacionais vão se estabelecer, aliás, já estão se estabelecendo. Grandes grupos multinacionais, nesse aceno do lucro certo, estão comprando terras que lhes dão uma possibilidade de controle estratégico de uma das grandes riquezas da região, que é a água, tanto do Aqüífero guarani como de todas as bacias de água que existem na região.

IHU On-Line - Além da briga pela demarcação de terras, quais serão os próximos problemas a serem enfrentados pelas comunidades Guarani-Kaiowá?

Egon Heck – A dificuldade deles com a terra é o problema da fome. O sistema da economia Guarani, que é uma economia de reciprocidade, voltada para a vida, é totalmente chancelado. Eles não têm, muitas vezes, nem um quintal para plantar um pé de mandioca. Dourados é hoje, praticamente uma favela indígena confinada. Essa realidade da fome tende a se agravar, porque a dependência deles vai ser cada vez maior. Atualmente, em torno de 90 a 95% das famílias Guarani-Kaiowá estão sujeitas à dependência de cestas básicas, distribuídas pelo governo. Se houver qualquer problema com a distribuição dessas cestas, eles passam fome. Por isso, resolver as questões da fome, da recuperação da terra, de políticas públicas integrais articuladas na parte da produção, da recuperação ambiental, pedem medidas urgentes. Os índios costumam dizer que tiveram suas terras com mata, animais, frutas roubadas, e ganharam de volta o capim, ou seja, terra morta. Essa terra terá que passar por um processo de tentativa de recuperação para que eles possam voltar a viver com o mínimo de dignidade.

IHU On-Line – Qual é a reação do governo perante a carta enviada pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que reivindica ações urgentes para a população indígena? Vocês já obtiveram alguma resposta?

Egon Heck – A resposta mais imediata foi recebida no dia seguinte, quando a Polícia Federal foi em Ñande Ru Marangatu e fez apreensões de meia dúzia de armas de grosso calibre e fuzis, que são exclusivos das forças armadas, mas que estavam nas mãos dos pistoleiros, nas fazendas. Esse foi um primeiro momento, mas que não surtiu um efeito mais substancial, porque, nos dias seguintes, os pistoleiros continuaram dando tiros por cima das comunidades. Então, nosso apelo, com o envio da carta, foi no sentido de que haja um julgamento imediato da ação que paralisou a homologação das terras. O Lula aprovou a demarcação ainda em 2005, e, em março do mesmo ano, o então ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, passou liminarmente a homologação. Esse processo, que se esperava que fosse julgado ainda em 2005, se arrasta até hoje. Ao mesmo tempo, esperamos ações eficazes da Funai e da Polícia Federal, no sentido de coibir essa brutal violência, que tem como intuito atemorizar os índios, para que eles não continuem na terra. Assim, julgamos fundamental a reversão desse quadro, para dar paz a essas comunidades que estão, desde a morte de Marçal, em 1983, até hoje, submetidas a uma permanente situação de fome, violência, despejos, mortes.

IHU On-Line – O povo Guarani-Kaiowá chegou a ocupar 3 milhões de hectares do atual território do Mato Grosso do Sul. Hoje, essa área se reduziu a 40 mil hectares. Quem é o maior oponente dos indígenas, e como a situação da terra chegou a tamanhas proporções?

Egon Heck – Isso é fruto, em parte, do processo histórico da ocupação econômica dessas terras na região, e da própria mentalidade Guarani, para quem, de certa forma, não fazia sentido ser dono da terra. O povo Guarani-Kaiowá sempre entendeu que as terras foram feitas para se viver. As matas e os animais eram vistos como seus recursos naturais. Mas eles acabaram trabalhando na consolidação do sistema de fazendas e da erva mate. Nessa época, os índios ainda conseguiam viver na mata. Mas, com a chegada do agronegócio, tudo foi transformado em pasto e plantação de soja. Assim, os índios acabaram sendo carregados em caminhões, para esses confinamentos. Esse processo de ocupação histórica da região e a ocupação da terra fizeram com que eles efetivamente acabassem nessa situação de ficarem sem terras de não terem, hoje, condições objetivas de uma sobrevivência com dignidade.

IHU On-Line – Como está se dando a mobilização indígena para agilizar a demarcação das terras?

Egon Heck – Os índios estão lutando pelo reconhecimento e pela retomada das terras tradicionais, onde moravam as comunidade que foram expulsas. Esse processo está em curso. Eles estão se mobilizando, e na semana passada estiveram em Brasília. Tem crescido também, entre os Guarani-Kaiowá, a realização de grandes assembléias para pensar estratégias de recuperação da terra. O problema é que esse processo é lento. Nesse ano, apenas uma terra foi retomada, em kurusu Amba, no mês de janeiro. Sem dúvida, o grande desejo dos Guarani-Kaiowá é voltar a viver o “nade reko”, ou seja, o jeito de viver guarani, que é profundamente espiritual, ligado à integralidade e à harmonia com a terra.

IHU On-Line – O senhor já presenciou algum ato de violência nessas comunidades, ou tem relatos das explorações que eles vêm sofrendo nas aldeias?Egon Heck – Sim, são vários. Essas situações de violência são quase que diárias. Eu acompanho mais de perto as ligações telefônicas do pessoal. Eles nos telefonam desesperados, da beira das estradas, e relatam principalmente as mortes de fome. Nós tentamos acionar algumas instâncias, como a assembléia legislativa, mas o atual governo suspendeu e destruiu as 11 mil cestas básicas no início do ano. Isso criou uma situação ainda mais caótica nas comunidades. Em janeiro e fevereiro desse ano, eles passaram fome.Diretamente, nas comunidades, eu não tenho estado nos momentos em que ocorrem as agressões, mas, sempre que visitamos as aldeias, eles contam histórias de suicídio e de assassinatos. Em Dourados, por exemplo, ocorrem os maiores índices de violência, que são agravados pelo alcoolismo, pela droga e também pelo trabalho escravo, na plantação de cana-de-açúcar. Hoje, a gravidade maior está relacionada ao processo de desintegração social do povo Guarani-Kaiowá. Os homens, geralmente, vão para a usina e ficam lá até 70 dias, enquanto mulheres e crianças ficam nos barracos, se sustentando com R$100,00 de adiantamento que eles recebem pelo serviço.

IHU On-Line – Muitos jovens indígenas estão se suicidando. O que essa atitude significa para o senhor? Ela representa o ponto máximo de desespero das pessoas?

Egon Heck – Os jovens são os que mais vivenciam esse drama, porque, por um lado, existe a perspectiva de futuro, mas ao mesmo tempo, a raiz do passado está bastante fragilizada pelo processo de relações, dos contatos, das necessidades geradas. Então, tudo isso faz com que os jovens Guarani-Kaiowá representem 80% das mortes, atualmente. Embora os jovens tenham um sistema educacional bem montado, entre eles, esses dados revelam a situação de desesperança no futuro, que retratam, por sua vez, uma situação de falta de identidade, que começa a tomar conta dessa juventude. Alguns professores Kaiowá-Guarani também se suicidam. Isso mostra que não basta ter um emprego público, como professor ou agente de saúde ou trabalhar na usina. Parece que o horizonte está se fechando perigosamente. Só será possível arejar essa perspectiva de futuro, na medida em que terra, identidade e condições dignas de vida possam ser recuperadas.

IHU On-Line – E como falar de direitos humanos nestas circunstâncias?

Egon Heck – Isso é algo que nos questiona profundamente, enquanto sociedade. O Brasil não só tem dívida com esses povos, mas uma culpa muito grande, na medida em que estamos permitindo que se implante um tipo de sistema que nega e que fecha as portas para a realidade dos povos. Além disso, é um sistema que concentra tremendamente as riquezas e os bens nas mãos de uns poucos, enquanto os demais fiquem cerceados minimamente em suas condições de vida. Eu sempre digo que o nosso trabalho precisa ser mais eficaz, não só junto aos índios, mas junto à sociedade, na perspectiva de uma transformação e de uma ruptura mais profunda, em termos de modelo de direitos humanos.A declaração universal dos direitos dos povos indígenas, que foi aprovada pela ONU, no dia 13 de setembro , caiu num certo vazio nessa região, e permanecerá assim enquanto não houver um esforço do estado brasileiro de reverter esse quadro.

IHU On-Line – Como o senhor percebe os projetos de lei que tratam da exploração de recursos minerais em terras indígenas, principalmente na Amazônia?

Egon Heck – Desastroso. Várias áreas na Amazônia estão loteadas pelas grandes mineradoras nacionais e multinacionais. Quando esses projetos forem aprovados, será uma desgraceira para esses povos. Na melhor das hipóteses, eles vão ficar com algumas migalhas, e a grande maioria dos índios será submetida a um açoite civilizatório de espoliação, de valores. O que os Guarani-Kaiowá vêm passando no Mato Grosso do Sul irá se repetir com vários povos da Amazônia, especialmente da calha norte, que é a região em que existem mais jazidas minerais. O grande problema é que lá as empresas pretendem fazer mineração dentro das terras indígenas. Mesmo nas terras demarcadas, serão regularizadas explorações.

IHU On-Line – A capacidade que os índios vêm buscando, através das universidades, garantirá um futuro diferente para eles e poderá mudar o histórico futuro dessas comunidades?

Egon Heck – Essa é uma das ferramentas que os povos estão utilizando hoje. Eles costumam dizer que também estão combatendo os problemas com a caneta e, principalmente, com a sabedoria própria do povo, unindo a ciência e a técnica aprendida da sociedade não indígena. Assim, eles conseguem elaborar ferramentas eficazes de luta pelos seus direitos. Infelizmente, grande parte dos universitários indígenas talvez acabem sucumbindo a interesses individuais de conseguir um melhor estado de vida, se distanciando, muitas vezes, das comunidades de seu povo. Mas creio que, tendencialmente, o próprio movimento indígena consegue fazer com que seus estudantes tenham compromissos com suas comunidades, ao mesmo tempo que se adequem, cada vez mais, às próprias instâncias do conhecimento, como escolas e universidades indígenas, respeitando e valorizando o que é do próprio do seu povo. Isso tudo me parece ser um dos grandes acenos e contribuições da criação de novos modelos de sociedade, de novas perspectivas de países, que nós vemos, com bastante otimismo, na América do Sul.Esse modelo indígena que passa pelo processo educacional tem contribuído no sentido de construir novas forças, elementos organizativos e perspectivas de administrar com autonomia seus territórios. No entanto, num processo mais amplo, é necessário revitalizar os valores, as religiões, as culturas desse povo.

IHU On-Line – O governo do estado tem discutido, junto ao Governo Federal, alternativas para resolver os problemas dos povos indígenas da região, tanto no que se refere à demarcação das terras, como às violências sofridas pelos índios?Egon Heck – Infelizmente, a impressão que se tem e o que nós temos visto por aqui é que esse é um diálogo meio de surdos, porque as coisas não se dão de uma maneira muito clara e eficaz como deveriam ser, para chegar a entendimentos e conclusões mais efetivas com relação a esses problemas. Por exemplo, existe, na questão da terra, uma responsabilidade do governo estadual com relação à desapropriação de áreas e à titulação de áreas que eram indígenas e que acabaram sendo transferidas para propriedades particulares, pelo governo do Mato Grosso, e depois pelo governo do Mato Grosso do Sul. Essa responsabilidade precisa ser assumida pelos governos e pela sociedade sul matogrossense, porque foram eles que de alguma maneira propiciaram essa espoliação das terras indígenas.

IHU On-Line – Qual é o maior desafio para os povos indígenas do Mato Grosso do Sul?

Egon Heck - O grande desafio hoje é pensar a questão indígena, não como uma forma isolada, mas como um grande desafio nacional e do Mato Grosso do Sul, que conclama a todos nós a uma ação urgente e eficaz a curto prazo. A longo prazo, é necessária uma perspectiva sábia e inteligente, além de uma ação com justiça e equidade solidária para a reconstituição desses espaços de vida e felicidade do povo Kaiowá-Guarani em suas terras.A articulação dessas instâncias fará com que nós tenhamos a coragem histórica de mudar as nossas mentalidades e as nossas estruturas sociopolíticas, econômicas. Assim, abriremos espaço de oxigenação para que esses povos possam respirar, e não só continuar as suas lutas, mas contribuir na construção de uma nova história, com justiça e solidariedade.

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Os Guarani Kaiowá e Ñandeva


Parte do texto a seguir faz parte da pesquisa de Antonio Brand (BRAND, Antonio J. O impacto da perda da terra sobre na tradição kaiowá/guarani. Os difíceis caminhos da Palavra . Tese de doutorado, História, PUC/RS, 1998).


Os Guarani estão divididos em três parcialidades que vivem no Paraguai, na Argentina, no Uruguai e no Brasil: os Mbyá, com uma população estimada em 10 a 11 mil; os Avá-Chiripá, com cerca de 9 mil; e os Pài/Kaiowá, com 35 a 40 mil pessoas. A população Guarani que habita a região sul do estado de Mato Grosso do Sul é de cerca de 25 mil e, na sua grande maioria, corresponde à parcialidade Kaiowá e, em menor número, aos Ñandeva. Os Ñandeva se auto-denominam Guarani e, portanto serão tratados desta forma no presente texto. Embora em menor número, eles estão presentes em várias aldeias Kaiowá, por isso o uso da designação Kaiowá/Guarani para referir-se às duas parcialidades. "Há, contudo, entre os subgrupos Guarani-Ñandeva, Guarani-Kaiowa e Guarani-Mbya existentes no Brasil, diferenças nas formas lingüísticas, costumes, práticas rituais, organização política e social, orientação religiosa, assim como formas específicas de interpretar a realidade vivida e de interagir segundo as situações em sua história e em sua atualidade"(cf. http://www.isa.org.br/pib/epi/terena - Instituto Sócio Ambiental - Acessado em 31/01/06).
Os Kaiowá habitavam uma região de difícil acesso na serra de Amabai, atual fronteira entre Mato Grosso do Sul e Paraguai e, por isso, permaneceram praticamente isolados até meados do século XIX. Após a guerra do Paraguai, que teve como parte do cenário de batalha o território Kaiowá, estes passaram a ter cada vez mais contato com os não indígenas. O cultivo e extração da erva-mate, explorada em grande intensidade na região a partir da década de 1880, passou a incorporar significativo número de Kaiowá e Guarani como mão-de-obra.
Em 1882, o Governo Federal arrendou a região para a Cia Matte Larangeiras, que iniciou a exploração da erva-mate em todo o território Kaiowá/Guarani. Ainda em pleno domínio desta Companhia, o SPI demarcou, em 1915, a primeira Reserva com 3.600 ha para usufruto dos Kaiowá. Até 1928 são demarcadas para os Kaiowá/Guarani, em toda a região Sul do Estado, um total de oito Reservas, totalizando 18.297 ha . Inicia-se então, com o apoio direto dos órgãos oficiais, um processo sistemático e relativamente violento de confinamento da população Guarani nestas Reservas.
Com o desmatamento da região e a implantação das fazendas de gado e das Colônias agrícolas, em especial a CAND - Colônia Agrícola Nacional de Dourados, a partir da década de 40, dezenas de aldeias Kaiowá/Guarani tiveram que ser abandonadas pelos índios, sendo suas terras incorporadas pela colonização. A população dessas aldeias foi aleatoriamente "descarregada" nas Reservas. Esse processo de redução e confinamento compulsório seguiu inexorável, à revelia de toda a legislação já existente e a favor da proteção dos direitos indígenas à terra, até o final da década de 70. É necessário ressaltar que entendemos por confinamento compulsório a transferência sistemática e forçada das diversas aldeias Kaiowá/Guarani para dentro das oito Reservas demarcadas pelo governo entre 1915 e 1928 (Brand, 1998).A partir de 1978, algumas comunidades, com o apoio de setores da sociedade civil e dispostas a não aceitarem perder suas terras tradicionais, iniciam, com êxito, a luta para interromper essa prática histórica, comum em toda a região, pois enquanto eram necessários como mão-de-obra nas fazendas, os Kaiowá/Guarani podiam permanecer em suas aldeias, porém, concluído o desmatamento, eram expulsos, cabendo, em muito casos, aos órgãos oficiais a tarefa de efetivar a transferência para as Reservas.

A transferência de inúmeras aldeias e famílias extensas para dentro das Reservas demarcadas entre os anos de 1915-1928, não significou apenas o deslocamento geográfico dessas aldeias e a correspondente perda das terras. A vida dentro das Reservas impõe aos Kaiowá/Guarani profundas transformações na relação com o território tradicional, pois, ao perder a sua aldeia, eles são obrigados a disputar um lote cada vez mais reduzido dentro das mesmas. A crescente imposição do trabalho assalariado surge como alternativa de subsistência, mas atinge as bases tradicionais de sua economia, reforça a exploração como mão-de-obra barata e desqualificada, obrigando os índios a passarem meses distantes de suas famílias. As oito usinas de álcool e açúcar em funcionamento no Estado, assinaram, no ano de 1999 e em fevereiro de 2000, o denominado "Pacto Social" (acordo firmado entre órgãos públicos e entidades não governamentais) que visa regularizar as relações de trabalho mediante o registro dos trabalhadores indígenas. Porém, com esta medida, oficializou-se a permanência dos índios fora de suas aldeias, em contratos sucessivos de 90 dias, durante seis a oito meses em cada ano.
Finalmente, temos as alterações no sistema de chefia, com a imposição (pelo SPI) da figura do capitão. Tudo isto vai se refletir na gradual inviabilização da religião tradicional, entendida aqui como as prática e crenças, por intermédio das quais expressam a sua relação com o sobrenatural, que, ao mesmo tempo, constituem-se em referenciais básicos indicativos de cultura. O impasse maior para a manutenção do modelo cultural Kaiowá/Guarani está, justamente, nas Reservas demarcadas até 1928. É nelas que se verificam, inclusive, significativos índices de suicídios.
A partir dos anos 1970, com a mecanização e a especialização em torno da soja e do gado de corte, a presença da mão-de-obra indígena deixou de ser indispensável e, em alguns casos indesejável. Por essa época as famílias que localizavam-se nas fazendas da região foram transferidas para oito reservas que haviam sido demarcadas entre as décadas de 1910 e 1940 pelo Serviço de Proteção ao Índio, próximas à cidades da região, como Caarapó, Amambaí e Dourados. A exigüidade das terras para o número total de indígenas tem sido um grave problema. Hoje, cerca de 30 mil Kaiowá e Guarani no estado ocupam um área de cerca de 40 mil hectares.
Segundo classificação do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), a situação das terras indígenas em Mato Grosso do Sul é a seguinte: 17 registradas, 5 homologadas, 3 declaradas, 3 identificadas, 10 a identificar, 8 reservadas e 74 sem providências. A terra indígena mais recentemente demarcada é a Taquara, situada no município de Juti, onde os Kaiwá de Taquara passam a possuir 9.700 hectares reconhecidos pela legislação.

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