quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Mozeni Truká, mais uma vitima


Esse que tá falando aí em cima é o cacique Neguinho, do povo Truká, de Cabrobó.
Esse que tá olhando para ele é o atual governador de Pernambuco, Eduardo Campos.
O governador foi eleito há dois anos com o voto de muita gente, incluindo muitos dos milhares indígenas e quilombolas que vivem no Estado e que estavam arretados com as gestões anteriores.
Essa foto foi tirada no dia 20 de maio desse ano, durante a assembléia do povo Xukuru do Ororubá, em Pesqueira.
Se foto tivesse som, você poderia agora ouvir Neguinho falar do problema da criminalização das lideranças indígenas e da impunidade que cerca os crimes contra os povos, especialmente em Pernambuco.
Você também iria poder ouvir Neguinho pedir - mais uma vez - a punição para os quatro policiais militares que, em 2005, invadiram a aldeia truká e assassinaram Adenilson Viana e seu filho Jorge.
Alguns desses PMs envolvidos no crime continuam em Cabrobó e foram até promovidos.
Capaz de você ouvir também o cacique dizendo que, se não forem tomadas providências, mais algum líder poderia ser assassinado.
Pergunta o que fez o governador.
Eu não saberia responder.
Isso tudo foi três meses antes de o líder truká Mozeni Araújo ser assassinado na frente do comitê eleitoral em que tocava sua campanha para vereador.
O assassino, preso em flagrante, Maurício da Silva, nunca tinha sido visto mais gordo. Alegou que o crime tratava-se de uma vingança por uma discussão há mais de dez anos.
Até hoje nenhuma testemunha foi ouvida.
Desde 2001, é a quinta liderança truká assassinada.
Nenhum dos crimes até agora foi esclarecido.


MANIFESTO DAS ORGANIZAÇÕES SOLIDÁRIAS AO POVO TRUKÁ
"Morre o homem, mas não morrem os sonhos" (Neguinho Truká)
"A exemplo de Xicão Xukuru, o sangue das lideranças indígenas que escorrem fecundam a terra e faz nascer novas lideranças" (Zé de Santa – Vice-Cacique Xukuru)

Uma intensa tristeza se abate sobre todos os povos do Nordeste: foi brutalmente assassinado, no dia 23 de agosto de 2008 mais uma grande liderança indígena Truká: Mozeni Araújo. Este dia é mais um dia de sangue para o povo Truká. Mozeni Araújo foi abatido covardemente na cidade de Cabrobó por um pistoleiro, a crime de mando, em razão da luta histórica de seu povo pela efetivação de seus direitos. O assassinato é mais uma tentativa de fragilizar, fragmentar e desarticular o processo de organização dos povos indígenas. Mozeni exercia um papel primordial de ponderação, como facilitador, nos momentos de resolução de conflitos nas lutas enfrentadas e sua morte é resultado de uma ação premeditada, que busca silenciar a voz Truká.
Os Truká, no arquipélago de Assunção na cidade de Cabrobó, vêm se organizando há mais de 70 anos para retomarem seu território e concretizarem o sonho dos seus ancestrais. Esse processo de retomadas se inicia na década de 80 e se acelera na década de 90. A retomada realizada em 1999 é divisor de águas para demarcação e homologação em grande parte do território, e como conseqüência surge uma série de ameaças e violência contra os Truká. Além do embate com posseiros, o Povo representa forte resistência contra grandes projetos desenvolvimentistas, como a transposição do rio São Francisco, onde o território Truká encontra-se invadido pelo Exército brasileiro, e as barragens de Pedra Grande e Riacho Seco, que poderão trazer grandes impactos para a região ("Tudo isso é uma serpente. A cabeça tá nos nossos irmãos Truká e Tumbalalá; aqui, no Povo Anacé, está o rabo que é onde tá o pior veneno" - João, do povo Anacé, no Ceará, referindo-se à transposição).
É nesse contexto da resistência heróica às fortes pressões imprimidas contra esta comunidade que se inserem os motivos e interesses que envolvem o assassinato de Mozeni Araújo, assim como foi o brutal assassinato da liderança Truká Dena e de seu filho Jorge, com apenas 17 anos, no dia 30 de junho de 2005, estes assassinados por 4 policiais militares que estavam à paisana.Dena como Mozeni eram lideranças importantes nos períodos das retomadas de terra.
Quando não são assassinadas, as lideranças são vítimas de um sistemático processo de criminalização com o forte aval de segmentos do Estado brasileiro, principalmente, no caso do povo Truká, por agentes policiais e pela promotoria local. Os caminhos da criminalização e violência se estendem a outros povos indígenas no Nordeste e no Brasil, destacamos: Xukuru de Pesqueira, os Indígenas da Raposa Serra do Sol, os Guarani em Mato Grosso do Sul, os Cinta Larga em Rondônia e os Pataxó e Pataxó Hã-Hã-Hãe na Bahia.
"Nós que somos lideranças corremos este risco. Vivemos num País sem lei. Aqui se tira a vida de uma pessoa como se matam os passarinhos, principalmente em Pernambuco. É preciso que o mundo possa nos ajudar. Hoje se não bastasse matar nossas lideranças ainda tem o processo de criminalização. Vivo cercado de dois seguranças, sobretudo depois que sofri um atentado e morreram dois jovens que andavam comigo". (Marquinhos Xukuru ao desabafar e lembrar de seu pai - Xicão Xukuru - que teve sua vida ceifada por pistoleiros).
Há quinhentos anos que os povos indígenas são violentados nas terras do Brasil. Escravizados, perseguidos e mortos, tiveram que silenciar por séculos suas identidades indígenas como estratégia de sobrevivência. É visível o nível de vulnerabilidade das lideranças indígenas, constantemente ameaçadas e mortas; a força do modelo político-econômico que violenta seus direitos; a impunidade sobre os crimes contra lideranças; a demora nos processos de demarcação e titulação-posse dos territórios indígenas, como é o caso dos Truká e dos Tumbalalá, aceleram ainda mais acontecimentos dessa natureza, apresentando-se como uma verdadeira estratégia de vulnerabilizar, desgastar e intimidar a luta dos povos indígenas.
"Hoje a gente sofre, com essa dor, mas tudo que Mozeni foi para o povo Truká, nós não vamos deixar cair. A história do povo Truká continua. Hoje tão matando o nosso povo, mas não vão conseguir. Como fez o seu avó Acilon Ciriaco, Mozeni deixou seus filhos, deixou seu povo e nós não vamos desistir não." (Pretinha Truká).
MOZENI ARAÚJO era um homem de natureza terna e pacífica. Conhecido pela forma ponderada com que lidava com a intensidade dos conflitos iniciou muito jovem como liderança, construindo-se nas lutas pela retomada de seu território, em seguida, trabalhando como agente de saúde comunitário. Também era agricultor, logo cedo entrou na luta em defesa da terra, da água e do Povo Truká. Foi Vereador e atualmente era militante do PT e candidato a Vereador. Sua história não permite que os Truká se calem e sua passagem para o Reino dos Encantados nutre em seus herdeiros a força dos maracás.
Nós, diante deste crime repugnante, manifestamos nossa indignação e principalmente nossa solidariedade com a família de Mozeni Araújo e com o povo Truká. Exigimos as devidas investigações sobre os crimes cometidos e que os responsáveis respondam pelos seus atos. Exigimos que o Estado Brasileiro supere a violência neocolonizadora e venha garantir em sua integralidade os direitos fundamentais dos povos indígenas determinados nos tratados internacionais e legislação nacional.

Neste momento de dor, buscamos lembrar o que aprendemos com o povo Truká: seu grande espírito de luta!
NO REINO DE ASSUNÇÃO, REINA TRUKÁ!
ASSINAM ESTE DOCUMENTO:
APOINME, Articulação Popular do São Francisco, Articulação de Mulheres Trabalhadores da Pesca do Estado da Bahia, Articulação do Semi-Árido, MST, Movimento dos Pescadores da Bahia, MAB, MPA, NECTAS-UNEB, CPP, CPT, CIMI, AATR, IRPAA, AGENDHA, CENTRO MACAMBIRA, SINTAGRO, CONSEA – Petrolina, Centro de Cultua Luiz Freire, Plataforma DhESCA Brasil.



POVO TRUKÁ:
UMA TRAJETÓRIA DE LUTAS, LUTOS E LIBERTAÇÃO

Em memória de Mození Araújo, guerreiro e mártir do povo Truká.


No dia 23 de agosto, mais uma liderança truká, Mození Araújo, irrigou com seu sangue o árido solo do sertão pernambucano. Registros históricos revelam que desde o período colonial muitos guerreiros do local deram suas vidas em defesa da vida de seu povo.
O território tradicionalmente ocupado pelo povo Truká inclui um arquipélago formado pela majestosa Ilha da Assunção e dezenas de ilhotas. É, portanto, banhado pelas águas de Opara, que recebeu dos colonizadores o apelido de Rio São Francisco, sendo hoje carinhosamente referido pelos habitantes tradicionais e a população ribeirinha em geral como Velho Chico. A fertilidade das terras e sua estratégica localização, possibilitando acesso fluvial aos estados de Pernambuco e Bahia, despertaram muito cedo a cobiça dos invasores do interior do Nordeste.
Ainda no século XVII, durante o chamado ciclo do gado, atividade produtiva utilizada como estratégia de expansão e penetração interiorana do projeto colonizador europeu, as terras truká começaram a ser invadidas pelas fazendas. Relatórios do frei Martinho de Nantes, capuchinho francês que atuou nas missões sertanejas, descrevem as batalhas travadas pelos indígenas habitantes das ilhas do São Francisco contra os criadores de gado, apoiados pela Casa da Torre, localizada no litoral baiano. Fundada por Garcia D`Ávila e sustentada por sua descendência, a Casa da Torre se constituiu numa espécie de quartel general para promoção das invasões e esbulhos das terras pertencentes às populações originárias da região.
Ao longo dos anos, muitos invasores usurparam o território da Assunção. Além dos fazendeiros, também a Igreja e o governo de Pernambuco, a primeira no início do século passado e o último a partir da década de 60, integraram o rol dos grileiros.
Todo o sofrimento vivido nas décadas mais remotas, bem como a bravura e feitos heróicos dos guerreiros de então, ainda permanecem presentes na memória truká. Graças ao exercício da oralidade, de geração em geração, a história se atualiza e ganha contornos contemporâneos, servindo como instrumento de conscientização e mobilização das novas gerações.
É esta consciência, sempre atualizada, que nas últimas duas décadas vem impulsionando o povo Truká a expulsar, de uma vez por todas, os invasores de seu território, exorcizando em definitivo o fantasma da família D`Ávila e construindo uma nova história, com suas terras totalmente livres da presença de intrusos.
No momento, o projeto de Transposição das águas do Rio São Francisco, empreendimento do governo federal, representa uma nova ameaça às terras tradicionalmente ocupadas pelo povo. Mas a sabedoria e a experiência acumuladas durante séculos de lutas de resistência, são motivo de garantia e certeza de que, mais uma vez, a vitória será dos Truká.


O ressurgimento do Reino da Assunção
Não obstante à incansável e invencível resistência dos seus ocupantes originários, no início dos anos 80, grande extensão das terras da ilha da Assunção e numerosas ilhas pequenas encontravam-se sob o domínio dos invasores. Poucas famílias indígenas conseguiam se manter em algumas ilhotas de difícil acesso, enquanto outras eram utilizadas como mão-de-obra barata pelas fazendas invasoras.
No ano de 1981, os Truká iniciam uma reação contra aquela situação de opressão em que se encontravam e retomam parte da terra invadida pela SEMEMPE – Companhia de Sementes e Mudas de Pernambuco. Nesse período, foi assassinado o líder Antonio Bingô. No ano seguinte, o povo realizou nova retomada, outra vez nas terras terras invadidas pela SEMEMPE. A polícia de Cabrobó e funcionários da empresa estatal reagiram com muita violência. Em função dessas ações da comunidade, a Funai começa a reagir e dois anos depois inicia o processo de demarcação da terra, até hoje não concluído.
O procedimento demarcatório permaneceu parado durante muitos anos. Neste ínterim, uma grande ofensiva de violência avança contra o povo: seqüestros, torturas e assassinatos, passam a ser praticados contra os indígenas pelos pistoleiros das fazendas, que além da atividade agropecuária, passaram também a cultivar maconha. Este cultivo, nos anos 90, propagou-se pelo sertão pernambucano, na região denominada polígono da maconha.
Em face do grande número de crimes e da total impunidade, em 1992, o Cimi Nordeste publicou um documento-denúncia intitulado Truká: violência, impunidade e descaso, tendo a divulgação do mesmo despertado o interesse da Anistia Internacional, que repercutiu as denúncias alí registradas e solicitou providências por parte das autoridades nacionais.
Diante da completa inoperância do governo brasileiro, os Truká, treze anos depois da primeira retomada, reiniciam o processo de reocupação do arquipélago. Em maio de 1994, ocupam a fazenda de Apolinário Siqueira, um dos últimos coronéis da região, conhecido por Xinxa, o rei da cebola, e temido por todos. Em 1995, retomam outra faixa de terra que se encontrava sob a posse do fazendeiro Cícero Caló. A mobilização do povo manteve-se num processo contínuo, culminando com a retomada definitiva de todo o arquipélago, no ano de 1999, quando todas as fazendas foram ocupadas, tendo sido expulso todo o gado nelas existentes. Como há apenas uma ponte que liga a grande ilha da Assunção ao continente, mais precisamente à cidade de Cabrobó, a ponte serviu como corredor para a gigantesca boiada, que não tendo para onde se deslocar, se dispersou pelas ruas da cidade, provocando grande tumulto entre os moradores.
Nessa histórica e heróica empreitada, as lideranças e alguns membros da comunidade sofreram toda sorte de perseguição e violação de seus direitos. Foram violentamente reprimidos por agentes do poder público, sendo a Ilha da Assunção invadia várias vezes por policiais federais e militares, que espalhavam terror entre a população e praticavam torturas físicas e psicológicas. Como parte da estratégia de criminalização das lutas do povo, muitos indígenas foram processados. O cacique Aurivan, mais conhecido como Neguinho truká, chegou a ser preso.
Mesmo depois da expulsão dos fazendeiros, a polícia ainda continuou a perseguir as lideranças. No ano de 2005, quatro policiais militares invadiram a terra indígena e assassinaram o líder Adenílson Vieira e seu filho Jorge, quando estes se encontravam numa festa da comunidade com cerca de 600 pessoas. A principal testemunha ocular dos dois homicídios era Mození Araújo, assassinado há 8 dias.
Com o arquipélago já totalmente livre de intrusos, a luta agora está direcionada para recuperar a parte do território tradicional que fica no continente, à margem esquerda de Opara. Por esse motivo, em 2007, as comunidades truká se mobilizaram mais uma vez e ocuparam uma fazenda localizada na área em que estão sendo construídas, pelo exército brasileiro, as obras para transposição das águas do São Francisco. É mais uma batalha homérica para o valente povo do rio.
Contudo, a recuperação do domínio total sobre o arquipélago, hoje sob a posse plena de seus habitantes originários, provocou mudanças substanciais na vida do povo.
No imaginário Truká, seu território tradicional conforma um reino. A Ilha da Assunção representa o coração desse reino. A idéia de reino que durante o processo de colonização se configurou na memória de alguns povos indígenas do Nordeste, não corresponde às tradicionais monarquias, constituídas por um poder totalitário opressor que domina outros povos e os expropria de seus territórios e riquezas naturais. Refere-se a um reinado mítico, onde não há soberanos nem vassalos. Trata-se de um reino com contornos escatológicos, “governado” pelos encantados que se constituem nos principais protetores da terra sagrada onde aqueles povos habitam. Aproxima-se mais da idéia de Reino de Deus da teologia cristã. O esbulho praticado contra suas terras representou um processo de dessacralização, laicização e profanação do espaço sagrado, os territórios tradicionais.
A expulsão dos invasores das ilhas e a conseqüente recuperação territorial, significa muito mais que uma simples posse fundiária, representa o fim do exílio, mais do que isso, a recriação do espaço sagrado, do território mitológico, o reencontro das pessoas e do povo consigo mesmo. É o renascimento do Reino da Assunção e esse sentimento está registrado na obra de produção coletiva das comunidades, recentemente publicada – No Reino da Assunção, Reina TRUKÀ.


De canela cinza à Nação Truká
Até os anos 90, a população do município de Cabrobó e da circunvizinhança, costumava referir-se aos moradores da ilha da Assunção como “canelas cinza”, essa expressão de sentido depreciativo e discriminatório era motivo de vergonha e humilhação para os habitantes locais. Graças ao seu espírito guerreiro, o povo reconquistou a terra, a auto-estima e a autonomia, sendo hoje referenciado pelos cabroboenses e demais regionais como povo Truká. Percebendo essa positiva mudança de comportamento por parte da população do entorno, Mození costumava repetir: “nós passamos de canela cinza à nação truká”.
A frase por ele imortalizada traz consigo todo o simbolismo do significado da consciência coletiva de pertencimento a um povo e dentro dessa coletividade a importância de cada indivíduo, cada guerreira, cada guerreiro, com sua trajetória de vida, com a marca de seu corpo, antes canela cinza, agora corpo expressão da alteridade, da dignidade, da honradez, da identidade Truká, da qual Mození sempre continuará a fazer parte, pois, “o que criamos passa a ficar no mundo com nossa marca, com a marca de nossa presença ou, então, de nossa ausência, mas sempre nossa marca”.


Saulo Ferreira Feitosa


Brasília, 31 de agosto de 2008


Um comentário:

Anônimo disse...

Evidentemente que esse assassinato é mais uma situação emblemática na vida desse povo. Parabenizo esse blog pela coragem do autor e pelos maravilhosos textos aqui divulgados. A CAUSA INDIGENA É DE TODOS NÓS!