quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O mundo de Evo


Por Gehard Dilger,apaixonado pela América Latina desde os anos 80, começou a se dedicar ao jornalismo na Colômbia. Correspondente do diário berlinês “taz, die tageszeitung” para a América do Sul.
Evo Morales está vivendo seu melhor momento como presidente. Em El Salvador, insistiu em suas críticas sobre o sistema capitalista, participou de uma partida de futebol contra os veteranos da seleção salvadorenha de 1982 e convidou a imprensa para uma breve coletiva, após o encerramento da Cúpula. Em 25 minutos, o presidente boliviano revelou boa parte de suas convicções políticas.
Um dia depois, anunciaria a suspensão das atividades do DEA, organismo chave dos Estados Unidos na política de combate às drogas. Na Bolívia, Morales acusa 27 agentes do DEA (Drug Enforcement Administration) de conspiração com a oposição.
Em El Salvador, o presidente, que acaba de completar 49 anos, explicou sua posição frente ao “Império”: “A luta contra o narcotráfico aplicada pelo Departamento de Estado Americano serve apenas para o controle político na América Latina”, disse Morales. Esta “luta contra o narcotráfico” serviria de “pretexto” para “dominar e sobrepujar” a América Latina, mediante a criação de bases militares.
“Felizmente, isso está acabando. No Equador já não haverá mais base militar, na Bolívia, não há base militar”, disse, dando conta do teor de pressão presente nas novas constituições de ambos países. “Com certeza isso os incomoda”, resumiu Morales.
Bem ao estilo franco e nada diplomático, que lhe é característico, acrescentou: “Com que motivos invadiram o Iraque? Armas de destruição em massa… Onde estão? O plano de fundo é o controle do petróleo, por meio de falsos pretextos. Que terrorismo… que eu saiba, o único terrorista que existe no mundo é o Bush, não conheço outro terrorista”.
Ao mesmo tempo, Morales reiterou seu desejo por estabelecer relações respeitosas: “O governo boliviano está disposto a ter relações com o novo governo dos Estados Unidos, dentro de uma cultura de diálogo, uma cultura de amizade, mas não vamos permitir a nenhum governo, a nenhum embaixador, que chegue a conspirar contra a Bolívia – numa referência à expulsão do diplomata americano Philip Goldberg, em setembro, uma medida que, na época, recebeu o apoio de Luiz Inácio Lula da Silva.
Querem nos castigar, mas não conseguem
Também não se mostrou preocupado com as represálias de Bush, que está decidido a suspender privilégios alfandegários para as importações bolivianas, concedidos como recompensa à colaboração e ao suposto combate ao narcotráfico.
A medida ameaçaria uns 20 mil postos de trabalho, sobretudo na indústria têxtil de El Alto, subúrbio de La Paz. “Querem nos castigar, mas não conseguem”, explicou Morales, “São apenas 60 milhões de dólares por ano”, mas Hugo Chávez e Lula garantiram que Venezuela e Brasil estariam dispostos a abrir seus mercados para esta produção.
“Se compartilhássemos das mesmas políticas intervencionistas e de privatizações do sistema capitalista, seguramente os Estados Unidos dariam tudo para a Bolívia! Mas, felizmente, começamos a nos tornar dignos. Precisamos de boas relações com todo o mundo, mas não submissão. Isso acabou. Estamos preparados para nos defender contra o amedrontamento e a chantagem econômica.
A comparação com a Colômbia salta à vista e mostra a hipocrisia da medida do governo dos EUA: Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e o Crime (UNODC), em 2007 os cultivos de coca na Bolívia aumentaram 5%, enquanto que no país aliado de Washington, apesar do apoio bilionário através do Plano Colômbia, eles dispararam 27%. Evo Morales assinala outra diferença: “Nós respeitamos os direitos humanos, reduzimos as plantações em acordo com os movimentos sociais. Antes era militarização, mortos e feridos o tempo todo. Isso acabou”.
Em junho, o presidente indígena havia condenado a nova política de imigração da União Européia como "diretiva da vergonha".
Agora, comentou que o tema veio à tona na reunião fechada apenas com os chefes de Estado, antes do encerramento da Cúpula: “Alguém dizia que o que pagamos por um mês de trabalho é o que se paga por um dia de trabalho nos Estados Unidos. Isto se deve à imigração. Na Bolívia há funcionários que ganham 200, 300 dólares, e estes funcionários preferem ir para a Europa para ganhar 1.000 euros por mês. Isto são as chamadas assimetrias, e os presidentes estão obrigados a discutir isto, se querem imigração com igualdade entre os continentes. Quando expulsam nossos compatriotas, há problemas sociais, botam para fora o pai, a mãe. E os filhos que ficam aí, o que vão fazer com estes filhos?”
“Os serviços básicos são direitos humanos”
“Como você quer abolir o capitalismo?”, perguntou um jornalista salvadorenho.
Morales tem uma visão otimista: “Há uma rebelião dos povos contra Império”, disse. “Na América Central, em Honduras, Nicarágua e Guatemala, há um processo que torna mais digna nossa região. E se falamos de América do Sul, há o companheiro Chávez, Equador. Em Cuba, Fidel já cumpre 50 anos da revolução cubana. Eu, como dirigente sindical nas décadas passadas, tinha muita vontade de apoiar esta luta solitária de Cuba”.
Apontou a pobreza nos países capitalistas. “Visto a partir de nossa vivência, não é solução nenhuma concentrar tanto dinheiro em poucas mãos, e quando não podem concentrar, há guerras e intervencionismo militar. Ou quando há este tipo de crise, decidem resolvê-la com base no saque de recursos naturais, as privatizações, não apenas de petróleo ou minerais, mas também da água, a privatização dos serviços básicos”.
Sua concepção de socialismo é basicamente estatal: “Nós estamos apostando, dentro da nova Constituição, em que nenhum serviço básico possa ser negociado através do setor privado. Luz, água, telefones, são direitos humanos, portanto, devem ser preocupação do Estado, do governo.”
“Tivemos nossos recursos naturais saqueados, e a aplicação, nos últimos 20 anos, do neoliberalismo, o que foi outro saque, outro roubo. Em 2005, antes de que eu fosse presidente, a Bolívia recebia 300 milhões de dólares pela exploração dos hidrocarbonetos. No ano passado, depois da modificação na lei dos hidrocarbonetos e da nacionalização, a Bolívia recebe 2 bilhões de dólares. Como mudou a situação econômica! A partir de nossa experiência, o neoliberalismo, o sistema capitalista não é nenhuma solução em meu país”.
Respeito à diferença
“Estamos dispostos a debater”, disse Morales, que a pesar de suas convicções, demonstrou desde 2003 ser um astuto negociador. “Eu, com minha experiência de luta sindical, de dirigente, e como presidente, quero debater políticas, mas tudo pensando em nossos povos. Respeitamos as diferenças que temos. Os povos têm todo o direito de decidir se são de esquerda, de direita. Temos o máximo respeito, isto também é democracia.”
“O povo boliviano quer transformações profundas, mas na democracia, com o voto do povo. Na Bolívia, as ditaduras militares dos anos 60 e 70 estão sendo substituídas por referendos, às vezes ilegais e inconstitucionais, mas eu saúdo a participação dos setores sociais e da comunidade internacional…”
Continuam aparecendo mais recursos naturais, o petróleo a flor da terra, o ferro a flor da terra, o lítio. Em quase 200 anos, nunca pensaram no país. Criamos um mistério para que planifique o desenvolvimento do povo boliviano nos próximos 50 anos, aproveitando estes recursos.
A cultura da corrupção
Em sua vida privada, Evo Morales é austero e trabalhador. Vê na corrupção um obstáculo maior: “Os senhores sabem que antes de que chegássemos ao governo, Bolívia era vice-campeã de corrupção”, disse. “Segundo dados de Transparência Internacional, começamos a baixar, baixar, continuamos baixando. Em geral, começamos a mudar.”
“Mas é difícil erradicar toda a corrupção, lamentavelmente. Eu posso dar minha cabeça pelo vice-presidente, pelo chanceler, por outros ministros. Mas são tantos funcionários de base que dizem que nos resta pouco tempo e pensam, ‘agora é a minha vez, vou aproveitar’…”.
“Também me ensinaram isso quando eu ganhei a executiva de uma federação de camponeses do Trópico de Cochabamba, em 1988. Chegou um doutor perto de mim, um advogado de gravata – perdão, não estou questionando a gravata, embora haja companheiros que dizem que a gravata separa o pensamento do sentimento”.
“O doutor me disse: ‘Evito, o senhor tem que aproveitar, tem dois anos para aproveitar, e eu vou te ajudar para que aproveite, como gerente da aduana agropecuária, onde se faz dinheiro’”. E eu não podia dizer ao doutor de gravata que não aceitava. Eu não dizia nem sim nem não, mas mentalmente não aceitava”.
Evo, o esportista
"O esporte é a melhor forma de atender a juventude, a infância, pela saúde, educação, disciplina”, ressaltou Morales, cuja paixão por futebol é tão grande que inclusive conseguiu que a Fifa revogasse a polêmica decisão de não permitir partidas oficiais nas altitudes andinas. “Lamentavelmente, vi campos de esportes em meu país sendo privatizados. Como os campos esportivos podem ser negócio privado? É um serviço público, e agora estamos começando a mudar isso”.
“Nunca haverá meia-lua, agora é lua cheia”
Seguramente, o bom humor que Morales mostrou em El Salvador deve-se às grandes vitórias que conquistou nos últimos meses. Em agosto, foi confirmado como presidente, como no histórico resultado de 67,4%. Em setembro, Bolívia esteve à beira de um conflito maior, quando os opositores dos departamentos da região conhecida como “meia-lua”, na parte leste do país, fizeram saques, sabotagens e um massacre no departamento amazônico de Pando. O conflito foi resolvido com o apoio inequívoco dos presidentes da UNASUL, o novo bloco sul-americano fundado em maio. A oposição se dispôs a negociar.
Em meados de outubro, foi superada a paralisação do processo constituinte: Majoritariamente, a oposição no Congresso de La Paz selou um acordo com o governo, que cedeu em dois pontos importantes: Evo Morales não se candidatará a uma segunda reeleição em 2014, e as limitações para a posse de terras, de 5 a 10 mil hectares, não serão retroativas. Em janeiro de 2009, o texto modificado da Constituição será submetido a um plebiscito. E em dezembro, haverá eleições gerais.
“Eu já dou por aprovada a nova Constituição”, disse Morales. “Já estamos trabalhando em sua implementação. Precisamos de pelo menos 100 novas leis e a grande dúvida que tenho é se este parlamento pode acompanhar e aprovar novas leis.”
“Quanto à meia-lua, agora é lua cheia. Nunca existirá meia-lua. Há pequenos grupos racistas e fascistas em Santa Cruz. Falam de independência e separação, mas o povo cruzenho aposta na unidade, e esta é nossa alegria, ver esta transformação de consciência”.
“Não há famílias no altiplano que não tenham familiares em Santa Cruz, Beni, Pando, ainda que haja muito racismo. Em Pando, em Cobija, as casas queimadas e saqueadas, foram apenas a dos orinoquenhos, onde nasci. Imagine esta mentalidade racista, de castigar e amedrontar, para que nunca mais estes povos se levantem. Historicamente, sempre quiseram humilhar dessa maneira”
“Por isso, digo que há uma rebelião. Eu acredito nas forças do povo.”
Os dez mandamentos
Em setembro, na Assembléia Geral das Nações Unidas, Morales apresentou seus “Dez mandamentos para salvar o planeta, a humanidade e a vida” (ver abaixo). “Não me arrependo por ter lançado isto”, disse com um sorriso. “O primeiro dos dez mandamentos é acabar com o capitalismo, e em uma semana o capitalismo desabou. Eu tinha razão!”
“Esta proposta dos 10 mandamentos, claro, tem muito mais respaldo dentro dos movimentos sociais, não apenas na América Latina, mas também na Europa. Não é a última palavra. Quero que os povos, os movimentos sociais e os partidos políticos a melhorem. Não se trata de buscar apenas uma ratificação, senão de construir uma nova proposta frente ao capitalismo”.
Os dez mandamentos, na versão que Evo Morales enviou ao Fórum Social das Américas, na Guatemala, em 9 de outubro:

Primeiro: se queremos salvar o planeta Terra para salvar a vida e a humanidade, estamos na obrigação de acabar com o sistema capitalista. Os graves efeitos das mudanças climáticas, da crise energética, dos alimentos e financeira, não são produto dos seres humanos em geral, mas do sistema capitalista vigente, desumano com seu desenvolvimento industrial ilimitado.
Segundo: renunciar à guerra, porque nas guerras não ganham os povos, ganham apenas os impérios, não ganham as nações, ganham as multinacionais. As guerras beneficiam a pequenas famílias e não aos povos. Os trilhões que se destinam à guerra devem ser destinados para reparar e curar a Mãe Terra, que está ferida por causa das transformações climáticas.
Terceira proposta para o debate: um mundo sem imperialismo nem colonialismo, onde as relações devem estar orientadas no marco da complementaridade, e levar em conta as profundas assimetrias que existem de família para família, de país para país, e de continente para continente.
O quarto ponto está relacionado ao tema da água, que deve ser garantida como direito humano e evitar sua privatização e concentração em poucas mãos, já que água é vida.
Como quinto ponto, quero lhes dizer que devemos buscar maneiras de acabar com o desperdício energético. Em 100 anos, teremos acabado com a energia fóssil criada durante milhões de anos. Como alguns presidentes reservam terras para automóveis de luxo e não para o ser humano, devemos implantar políticas para frear os biocombustíveis e, desta forma, evitar a fome e a miséria de nossos povos.
Como sexto ponto: respeito à Mãe Terra. O sistema capitalista trata a Mãe Terra como uma matéria-prima, mas a terra não pode ser entendida como uma mercadoria. Quem poderia privatizar ou alugar, negociar sua mãe? Proponho que organizemos um movimento internacional em defesa da Mãe Natureza, para recuperar a saúde da Mãe Terra e restabelecer a vida harmônica e responsável com ela.
Um tema central como sétimo ponto para o debate é que os serviços básicos, como água, luz, educação, saúde devem ser considerados como um direito humano.
Como oitavo ponto, consumir o necessário, priorizar o que produzimos e consumimos localmente, acabar com o consumismo, o esbanjamento e o luxo. Devemos priorizar a produção local para o consumo local, estimulando a auto-sustentação e a soberania das comunidades dentro dos limites que a saúde e os recursos escassoz do planeta permitam.
Como penúltimo ponto, promover a diversidade de culturas e economias. Viver em unidade, respeitando nossas diferenças, não somente fisionômicas, também econômicas, economias manejadas pelas comunidades e associações.
Como décimo ponto, plantemos o Bem-Estar, não viver melhor às custas do outro, um Bem-Estar baseado na vivência de nossos povos, as riquezas de nossas comunidades, terras férteis, água e ar limpos. Fala-se muito do socialismo, mas há que melhorar esse socialismo do século XXI, construindo um socialismo comunitário ou simplesmente o Bem-Estar, em harmonia com a Mãe Terra, respeitando as formas de vivência da comunidade.

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